No Dia Mundial do Doador de Sangue, celebrado nesta terça-feira (14), a polêmica em torno da doação por homossexuais volta à discussão no cenário mundial. Isso porque, após o atentado à boate gay em Orlando (EUA), no último domingo (12) – que culminou com 50 mortos e 53 feridos – muitos homossexuais, dispostos a ajudar, se viram impedidos por infringir as regras norte-americanas.
Nos Estados Unidos, a legislação diz o mesmo que as normas do Brasil: “homens que tenham mantido relações sexuais com outro homem no último ano não podem doar”. A determinação faz com que, na prática, integrantes desse grupo sejam impedidos de fazer a doação.
Uma campanha lançada em abril deste ano pela agência de publicidade Africa, em parceria com a organização não governamental (ONG) internacional All Out, quantificou em uma fila virtual o reflexo dessas regras. Contabilizando – por meio de uma enquete online – homens homossexuais que gostariam de doar sangue e não podem, a Wasted Blood tem uma lista de 215.301 doadores em uma fila de espera fictícia.
Segundo a campanha, os possíveis doadores têm, em sua maioria, entre 25 e 50 anos e poderiam ajudar 863.604 pessoas com um estoque simbólico de 97.155 litros de sangue.
A regra de abstinência sexual de um ano para os homossexuais interessados em doar sangue é nova em solo norte-americano. Ela vale desde 2015, quando o FDA (Agência Federal de Drogas e Alimentos), órgão que equivale à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), derrubou a norma que proibia homens gays de doar sangue por toda a vida e publicou as novas determinações similares às brasileiras. Para os brasileiros, por sua vez, a regra já vale desde 2004.
No Brasil, a restrição está expressa na Portaria 158/2016, do Ministério da Saúde, e na Resolução 43/2014, da Anvisa, as quais incluem na lista de 12 meses sem poder doar tanto os “homens que tiveram relações sexuais com outros homens”, como as “parceiras sexuais” desses.
As regras brasileiras são questionadas no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Na última semana, o ministro do STF Edson Fachin abreviou a tramitação da ação e decidiu que a questão será julgada diretamente no mérito, sem concessão de uma medida liminar. No entanto, ainda não há data para julgamento do processo.
“Todo sangue recebido no país é testado para averiguar qualquer tipo de contaminação. Se existe risco, ele existe para todas as amostras, a orientação sexual não deve ser parâmetro para isso”, avalia o ativista LGBT e presidente fundador da ONG Grupo Dignidade, de Curitiba, Toni Reis .
Voltada ao tema, a campanha Igualdade na Veia, criada pelo Grupo Dignidade, já reúne mais de 19 mil assinaturas em petição online contra a regra vigente no Brasil. “Não é a orientação sexual que deve eliminar um doador, mas sim o seu comportamento de risco, independentemente se falamos de héteros ou homossexuais”, avalia Toni Reis.
A causa é apoiada pela Defensoria Pública da União (DPU). Em audiência pública sobre o tema, em maio deste ano, o defensor público federal Erik Boson classificou as regras vigentes como “discriminatórias” e apontou que a norma “ajuda a estigmatizar a população gay, atribuindo a esses o estigma de ‘grupo de risco’”. “A previsão alimenta, reproduz e reforça a discriminação já existente na sociedade”, acrescentou.
As normas brasileiras se apoiam em diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS). O órgão, no entanto, destaca que a expressão “homens que fazem sexo com outros homens” descreve “um fenômeno comportamental e social em vez de um grupo específico de pessoas”. “É importante esclarecer que o critério de inaptidão temporária para doação de sangue para este grupo está fundamentado em dados epidemiológicos presentes na literatura médica e científica nacional e internacional, e não em orientação sexual”, destaca nota do Ministério da Saúde.
Segundo dados da pasta, no Brasil, 1,8% da população brasileira entre 16 e 69 anos doa sangue. Para justificar a restrição aos homossexuais, o ministério explica que dados do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais no ministério apontam que a epidemia de aids está concentrada em populações de maior vulnerabilidade, tais como “homens que fazem sexo com outros homens, usuários de drogas e profissionais do sexo”.
O ministério destaca que essas populações apresentam maior prevalência de infecção por HIV quando comparadas à população em geral. “Atualmente, cerca de 718 mil pessoas vivem com HIV/Aids no Brasil, indicando uma taxa de prevalência de 0,4% na população em geral. Já nas populações de maior vulnerabilidade, a taxa é de 10,5%”.
O presidente do Grupo Dignidade, Toni Reis, reconhece os números, mas pondera que as estatísticas “não mostram que todos os homossexuais têm aids”. “Precisamos promover uma discussão nacional, também queremos confiar no sangue que está nos bancos de todo o país, mas o que não pode é que as coisas continuem como estão. Temos relatos de homossexuais que nunca tiveram relações e mesmo assim foram impedidos de doar. A situação que existe hoje é de discriminação”, avalia.
A OMS corrobora com as regras em vigor no Brasil e nos EUA. Segundo documento da entidade, estudos internacionais apontam que “diminuir a restrição por um período mínimo de 12 meses a homens que mantiveram relações sexuais com outros homens poderia levar a um aumento de 60% no número de doadores com o vírus HIV”.
O dado levado em consideração é o de uma pesquisa realizada em 2003 no Reino Unido, que também aponta que esse mesmo risco subiria 500% caso não houvesse qualquer restrição. Já a publicação da Organização Pan-Americana de Saúde, braço da OMS, deixa claro que “pessoas que se engajam em comportamentos sexuais de risco devem ser recusadas como doadores por 12 meses após a última ocorrência”.
No mundo
Segundo informações do Ministério da Saúde, na maior parte dos países da Europa, homens que tiveram relações sexuais com outros homens são considerados “inaptos permanentes para doar sangue”.
No Canadá, o prazo considerado como chamada janela imunológica – período em que o vírus pode ficar incubado no organismo – é de cinco anos. Além do Brasil e dos Estados Unidos, Austrália e França consideram o intervalo de restrição para doações de 12 meses.
De acordo com informações da ONG Grupo Dignidade, “pelo menos 17 países não fazem distinção ou não estabelecem critérios específicos de exclusão de gays e outros homens que fazem sexo com homens como doadores de sangue”. A lista inclui: Argentina, Chile, Colômbia, México, Peru, Espanha, Itália, Portugal e Rússia. O questionamento que se encontra no STF acrescenta a esse grupo a África do Sul.
Outros critérios
O Ministério da Saúde lembra que a realização recente de cirurgias e exames invasivos, vacinação recente, ingestão de determinados medicamentos, tatuagens nos últimos 12 meses, bem como histórico recente de algumas infecções também podem tornar qualquer doador inapto por certo tempo.
Entram na lista, ainda, práticas variadas que deixem o candidato vulnerável a adquirir determinadas infecções, viagens a locais onde há alta incidência de doenças que tenham impacto transfusional, sintomas físicos e a temperatura do candidato no momento da doação.
(Fonte:Agência Brasil)
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