Dez posseiros foram mortos numa ação de policiais militares e civis no Pará. Na fazenda Santa Lúcia, na cidade de Pau D’Arco, não houve conflito ou confronto, os substantivos que buscam disfarçar os fatos e edulcorar a história. De um lado, o dos agricultores, dez perderam a vida. Do outro, não se contou morto ou ferido. Logo, inexistiu choque de forças simétricas. Ocorreu um massacre. Ou chacina.
A crônica do extermínio de lavradores naquele Estado ganha mais um capítulo. Em abril de 1996, na curva do S da rodovia PA-150, PMs fuzilaram 19 manifestantes. O episódio ficou conhecido como massacre de Eldorado do Carajás.
Os nove homens e uma mulher assassinados receberam comedida atenção do noticiário e dos brasileiros. A covardia não provocou escândalo, indignação, queixas inflamadas. A não ser as escassas vozes que teimam em não reconhecer como natural o que não é.
Os brados de cólera condenaram a depredação de prédios públicos em Brasília. E seus depredadores, que compuseram parte diminuta da multidão contada em dezenas de milhares que protestou contra Michel Temer e reivindicou a antecipação da eleição presidencial direta.
Antes do ataque aos edifícios de ministérios e do fogo colocado nas bicicletas do Itaú, os manifestantes foram fustigados por cavalaria. Mais tarde, um policial que não estava acuado disparou com arma na direção de quem estava desarmado ou ao menos não atirava.
Temer convocou as Forças Armadas para a segurança na capital. Para além da controvérsia sobre a constitucionalidade do recurso, o governo agonizante pretendeu dar demonstração de poder. E da capacidade de intimidar. Tais propósitos são evidentes como a fumaça que enevoou a esplanada brasiliense. O pretexto para apelar às tropas é a defesa do patrimônio público.
Na boca de outros, faria sentido. Mas não na da administração cujo zelo pela coisa pública é o que é. O nonsense parece indicar uma tendência nacional: quanto mais ladrão de dinheiro público o sujeito é, mais ele se esgoela em defesa do patrimônio público. A equação não se aplica a todos, pois os sinceros sobrevivem. Porém, somos mesmo o país da hipocrisia.
Essa constatação não implica endossar os danos ao patrimônio dos cidadãos, que acabarão por pagar a conta. Mas ajuda a compreender o contexto da radicalização. Quem é mais vândalo: o indivíduo que atira uma pedra em vidraça de ministério ou um governante que combina propina de 500 mil reais por semana, a ser embolsada durante 30 anos?
Os sermões contra a corrupção se sucedem, mas ela permanece. Aparentemente se ampliou nos governos FHC, Lula, Dilma e Temer. A roubalheira só dos anos 1990 para cá _a gatunagem existia antes, também na ditadura_ permitiria consertar alguns milhões de vezes o estrago da quarta-feira.
Os vândalos de ontem são dentes de leite em comparação com a corja que vandaliza o Brasil, as instituições em que a democracia deveria prevalecer, os direitos dos mais pobres, as conquistas alcançadas com suor pelos trabalhadores, os programas que impedem a morte por fome, as iniciativas que deixam menos jovens longe da escola e da universidade, os planos de preservação ambiental.
A bronca, como sempre, desvia os olhos da violência e da crueldade dos mais fortes.
O 24 de maio de 2017 não foi o primeiro dia em que a perda de vidas humanas foi desprezada (ou quase), em contraste com a histeria causada pela depredação de prédios.
Nossa coleção de infâmias é vasta.
Triste Brasil.
Mario Magalhães: Mais destales aqui
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