A aparição dos chamados “traficantes evangélicos” no contexto das favelas cariocas não é nova. Desde pelo menos 2007, ou seja, há pelo menos 10 anos, temos notícias de terreiros ameaçados e invadidos pelo tráfico. Já em 2008, a antropóloga Christina Vital pesquisava sobre o aparecimento dos “traficantes evangélicos” nas favelas cariocas. Vital, pioneira neste assunto, é autora do livro Oração de Traficante, que é resultado de sua pesquisa. E há ao menos mais dois interessantes livros, ambos frutos de pesquisas sobre a relação entre evangélicos do campo (neo)pentecostal e traficantes ou pertencentes a facções criminosas: Fé e Crime, de Vagner Marques, e Cristianismo e criminalidade, de Lucas Medrado. Em setembro de 2013, o Jornal Extra publicava uma reportagem intitulada “Crime e preconceito: mães e filhos de santo são expulsos de favelas por traficantes evangélicos”. A própria criação da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) no Rio de Janeiro tem relação direta com casos de agressão sofridas por afro-religiosos no Morro do Dendê. O que estamos vivendo hoje, portanto, já é uma tragédia anunciada há muito tempo.
A omissão e o silêncio de muitas igrejas e líderes evangélicos, pentecostais ou não, está no fato de muitos acharem que o traficante age da maneira errada, embora possa estar “fazendo o certo”
Então não há com o que se surpreender. O ambiente de formação colonial-escravocrata/racista da história do Brasil e, nela, o ambiente de instauração e formação das igrejas católicas e protestantes que aqui já chegaram impregnadas pela demonização e inferiorização do povo negro trazido de África, bem como de sua cultura e cosmogonia, permitiu a consolidação da mentalidade que associa a religiosidade de origem africana à feitiçaria diabólica, ao atraso e ao primitivismo. Portanto, a hostilidade sempre teve o seu lugar na sociedade brasileira, em qualquer classe e território. As igrejas pentecostais, que surgem classes abastadas mas e se espalham pelas camadas mais pobres da sociedade e, consequentemente, nas periferias que vão se formando nos centros urbanos, radicalizam esta hostilidade ao atribuírem o mal da vida do indivíduo às ações que são estabelecidas no plano espiritual, onde o diabo age, e o diabo neste caso quase sempre age por intermédio de “entidades” diversas da religiosidade de matriz africana que acompanha, por tradição, legado, herança direta ou indireta, grande parte da população preta e também pobre que divide com os evangélicos pentecostais as favelas, os morros e as periferias das cidades.
“essa luta é renhida e, embora não andemos atrás dos demônios, eles andam a nossa procura para nos afastar de Deus. São inimigos d’Ele e do ser humano; daí a necessidade da luta. Essa luta com satanás é necessária para podermos dar o devido valor à salvação eterna, pois não há vitória sem luta”.
Bispo Edir Macedo, em 1997
Mas é com as igrejas neopentecostais que o princípio da “batalha espiritual” empurra para o campo do fundamentalismo extremo e da perseguição deliberada as religiões de matriz africana. Há um processo pedagógico de reeducação (e não de alienação) no qual seus fiéis passam a organizar a si e suas relações com o mundo. Em outras palavras, são reeducados, por meio de diversos ritos, palestras, gincanas e etc, para uma visão de mundo no qual o demônio, materializado nas religiões de matrizes africanas, deve ser combatido. Agora o demônio é, de fato e declaradamente, os povos de terreiro.
Bispo Edir Macedo, em 1997, já anunciava em seu livro: “essa luta é renhida e, embora não andemos atrás dos demônios, eles andam a nossa procura para nos afastar de Deus. São inimigos d’Ele e do ser humano; daí a necessidade da luta. Essa luta com satanás é necessária para podermos dar o devido valor à salvação eterna, pois não há vitória sem luta”. A figura dos traficantes evangélicos apresentam outros desafios na construção de estratégias de combate ao racismo cultural religioso/intolerância religiosa, uma vez que este “novo” agressor está fora da institucionalidade convencional. Se por um lado, muitas igrejas não tem coragem de fazerem o que o traficante que ordena a destruição do terreiro faz, é comum do universo evangélico orações para que terreiros fechem, para que terreiros sejam substituídos por igrejas.
Até quando vamos permitir que determinados espaços religiosos evangélicos continuem se valendo da dita “vontade de Deus” para pregações que inspiram a perseguição, e quiçá a eliminação, de pessoas e culturas, ou legitimar tais violências com o silêncio?
A omissão e o silêncio de muitas igrejas e líderes evangélicos, pentecostais ou não, está no fato de muitos acharem que o traficante age da maneira errada, embora possa estar “fazendo o certo”, que é “expulsando o mal” da comunidade. Por fim, há sim uma relação entre a ação de capelania-evangelização pentecostal-neopentecostal nos presídios com a mensagem ou a “ordem” que chega na ponta, nas comunidades, e isso deve ser investigado. E mais do que isso, as investigações devem chegar às lideranças que devem ser responsabilizadas pelos argumentos que sustentam “biblicamente”, encorajando (quando não incitando deliberadamente) as agressões atuais.
Por fim, não temos ideia que caminhos percorrer, no entanto, acreditamos que não podemos cair na lógica de guerra como mecanismo para resolver esta problemática. Isto é, enquanto comunidades-terreiro não podemos alimentar as políticas de violência direcionada às favelas, pois, são políticas que seguem a mesma lógica que incita a perseguição às nossas tradições. E enquanto evangélicos, não podemos continuar sustentando a aberração da perseguição e da violência em nome de um suposto estabelecimento do “Reino de Deus” ou de demarcar o território como um espaços em que “quem manda é Jesus”. Porque no fim, são os mesmos corpos pretos e pobres, morrendo nos mesmos lugares, de diversas formas, seja de que fé for. São políticas racistas e genocidas que visam somente liquidar corpos pretos e pobres. Diante disto, estamos trazendo a seguinte questão: até quando vamos permitir que determinados espaços religiosos evangélicos continuem se valendo da dita “vontade de Deus” para pregações que inspiram a perseguição, e quiçá a eliminação, de pessoas e culturas, ou legitimar tais violências com o silêncio?
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