Maria Cristina Fernandes e Cristiane Agostine – O ciclo do PT no poder se encerrou e a esquerda precisa tirar o foco da eleição de 2018 e reconstruir-se. A análise é do líder nacional do MTST, Guilherme Boulos, cotado para disputar a Presidência pelo Psol, em um eventual cenário eleitoral sem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
No comando do movimento de moradia que reúne cerca de 55 mil famílias no país e triplicou de tamanho desde as manifestações de junho de 2013, Boulos diz que a eventual condenação de Lula não deve mobilizar multidões nas ruas. A apatia da população cresceu junto com a insatisfação com o governo federal e com o Congresso. O líder dos sem-teto não deve se filiar ao Psol antes do julgamento de Lula em segunda instância, em janeiro, mas afirma que a negociação com a sigla está avançada. A seguir, trechos da entrevista concedida ontem ao Valor.
Valor: Como será a esquerda pós-Lula?
Guilherme Boulos: Lula é a maior liderança social e política do país, fez o governo mais popular da história da nova República e teve acertos e erros. Mas não é possível achar que 2018 é 2002. O país está afundado em uma recessão enorme, está polarizado, a economia encolheu e a margem de manobra para uma composição social se reduziu muito. O desafio é pensar um programa que não seja o de conciliação, mas de enfrentamento e que bote o dedo na ferida de problemas estruturais.
Valor: Uma disputa eleitoral sem Lula une a esquerda ou a fragmenta ainda mais?
Boulos: Existe a compreensão do direito do Lula de ser candidato como uma questão democrática. Não é de convergência programática, mas de não deixar que o Judiciário defina o processo eleitoral no tapetão. A esquerda tem diversidade. A intolerância e a unidade artificial nós deixamos para a direita. Eles são bons nisso. Defendo que a esquerda se apresente em 2018 com projeto de enfrentamento, sem alianças com golpistas. No primeiro turno é muito improvável ter candidatura única. Já se lançaram pré-candidaturas.
Valor: Quem são os candidatos que o senhor considera nesse campo? A Marina é de esquerda?
Boulos: Não. Ela atravessou o rubicão quando apoiou Aécio Neves no segundo turno em 2014 e, em especial, quando apoiou o golpe [impeachment] em 2016. Marina foi para um caminho sem volta. Mas o cenário ainda está indefinido. O TRF-4 antecipou o julgamento para janeiro, o que é um escândalo, passou por cima de todos os ritos processuais e politizou.
Valor: Setores da esquerda apostam que a exclusão de Lula vai mobilizar as ruas contra o impedimento. O senhor vê essa disposição?
Boulos: Poucos foram às ruas para barrar uma reforma trabalhista que faz o país andar 80 anos para trás. Poucos foram às ruas para barrar uma emenda constitucional que congela investimentos públicos pelos próximos 20 anos. É um momento de perplexidade, de dificuldade. Por mais que haja uma grande insatisfação com o status quo, que se expressa na ampla rejeição do governo Temer e do Congresso, isso ainda não se traduziu em mobilização popular.
Valor: A que atribuiu isso?
Boulos: Parte da esquerda deixou de fazer o trabalho de base, de estar nas periferias e reduziu sua atuação política à disputa do aparelho do Estado. A esquerda paga por ter-se desvinculado dos setores sociais que dão sustentação a projetos de transformação política. Quem tem ocupado esse vácuo nas periferias urbanas são as igrejas pentecostais. O abismo entre o que as pessoas querem e as decisões do governo e do Congresso é tão grande que mesmo com mobilizações e rejeição ampla de Temer elas pisam no freio. As pessoas pensam: ‘vou para a rua e não está resolvendo’. Isso gera apatia, perplexidade. A longo prazo, cria uma fissura profunda entre Brasília e o Brasil, que se traduz no sentimento de insatisfação com a política e que pode se expressar em algum momento com explosões sociais.
Valor: Mas não há sinais disso…
Boulos: Ainda predomina a apatia, mas há sinais. Um exemplo é ocupação Povo Sem Medo, do MTST, em São Bernardo do Campo. Entramos no terreno com 500 pessoas e em uma semana tinhamos 5 mil. Hoje tem 8 mil famílias. São pessoas que foram por falta de alternativa e que estão se dispondo a lutar. Não é caso isolado, acontece em várias partes do país. O crescimento das ocupações é expressão do agravamento da crise social e da falta de resposta política. Ainda não tem potência para alterar a relação de forças sociais, mas anuncia a insatisfação popular.
Valor: O pós-Lula não tornará inadiável à esquerda enfrentar o tema do financiamento do Estado e da desigualdade no mundo do trabalho entre setores do funcionalismo público e trabalhadores da iniciativa privada?
Boulos: Temos que nos defrontar com os privilégios, inclusive na Previdência, mas o debate está mal colocado. O foco deve estar nos militares, na cúpula do Judiciário, nos parlamentares. A Previdência deles é muito onerosa. O discurso de que a reforma é para combater privilégios é mentira.
Valor: É justo que um professor tenha regime de aposentadoria mais benéfico do que o gari que trabalha na limpeza pública?
Boulos: A Previdência deve assegurar condições dignas a todos. O debate está mal colocado quando se parte da discussão de que há um grande déficit, que tem que cortar senão não se sustenta no longo prazo. A Constituição prevê receitas para a seguridade social que não são aplicadas na Previdência. O déficit também é resultado de manobra fiscal. A Previdência é parte da sustentação social e econômica do país e move a receita de muitos municípios. Colocar a Previdência como vilã só interessa aos bancos que querem ampliar os fundos de previdência privada.
Valor: A situação fiscal de 2019 não vai obrigar a esquerda a ser mais realista?
Boulos: A discussão para resolver o problema fiscal é uma reforma tributária progressiva, em que o andar de cima pague imposto. O financiamento do Estado tem que passar pelo imposto sobre grandes fortunas, maior progressividade no Imposto de Renda, com criação de novas faixas e isenção de faixas menores. Reforma tributária não é bolivariana, nem comunista. Foi feita na maior parte dos países capitalistas.
Valor: O sistema tributário é fruto de um consenso das forças políticas que aí estão. Como se muda isso sem alianças no Congresso?
Boulos: É preciso um plano de investimento emergencial que retome a economia no país, o emprego e a renda com o uso das reservas internacionais. Existe possibilidade para se fazer investimento público a partir daí e não depende do Legislativo. Existem duas formas de governabilidade. Uma é estritamente parlamentar e foi um dos erros que o PT cometeu: acreditar que a única forma de governar era em aliança com o PMDB. Outra possibilidade é construir governabilidade com respaldo popular.
Valor: Mas o tempo da mobilização da sociedade é mais longo que o da política…
Boulos: Mais ou menos. Veja o que aconteceu em países vizinhos, como no Equador, Bolívia, que chamaram Assembleias Constituintes e colocaram o povo no jogo. Sem isso, a esquerda nunca vai conseguir fazer um programa de esquerda e vai sempre ficar refém do PMDB. O PMDB nunca ganhou eleição presidencial e sempre esteve por trás de todos os governos. A única forma de se livrar disso é colocando o povo no tabuleiro.
Valor: No meio dessa apatia a que assistimos?
Boulos : A esquerda não pode ficar restrita a um projeto eleitoral. Temos um ciclo se encerrando, o ciclo de um estratégia que foi capitaneada hegemonicamente pelo PT, inclusive nos seus governos, de que era possível ter avanços sem enfrentar a estrutura arcaica de privilégios. Nos governos Lula se teve avanço porque havia um crescimento médio de 4%. Com manejo orçamentário se fazia política social sem tirar nada do andar de cima. Quando a crise vem, isso não é mais possível. A esquerda tem de pensar rumos, um novo projeto, nova perspectiva. Essa perspectiva não tem que ser pensada para a próxima eleição apenas, mas para os próximos 10, 20, 30 anos.
Valor: O senhor é candidato à Presidência?
Boulos: Recebi convite do Psol, com quem tenho excelente relação e respeito. O partido esteve conosco no enfrentamento do golpe e tem posições coerentes, mas neste momento o meu foco e do MTST está em enfrentamentos decisivos, por moradia digna e na resistência para preservar direitos, na luta contra a reforma da Previdência. Há também uma pauta democrática importante que é defender o direito de Lula ser candidato.
Valor: E se Lula for candidato o senhor mantém a candidatura?
Boulos: É evidente que existem conversas, mas o foco está no processo de mobilização e resistência. 2018 deve ser definido em 2018. Manuela D’Ávila lançou sua pré-candidatura, Ciro lançou sua candidatura. Acho bastante legítimo que a esquerda tenha diversidade de posições e isso se expresse no processo eleitoral.
http://www.valor.com.br/politica/5228435/ciclo-do-pt-se-encerrou-diz-boulos
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