Se organizasse um encontro de todos os seus trabalhadores domésticos, o Brasil reuniria uma população maior que a da Dinamarca, composta majoritariamente por mulheres negras, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Segundo dados de 2017, o país emprega cerca de 7 milhões de pessoas no setor – o maior grupo no mundo. São três empregados para cada grupo de 100 habitantes – e a liderança brasileira nesse ranking só é contestada pela informalidade e falta de dados confiáveis de outros países.
Com um perfil predominante feminino, afrodescendente e de baixa escolaridade, o trabalho doméstico é alimentado pela desigualdade e pela dinâmica social criada principalmente após a abolição da escravatura no Brasil, afirmam especialistas.
Um estudo feito em parceria entre o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ligado ao Ministério do Planejamento, e a ONU Mulheres, braço das Nações Unidas que promove a igualdade entre os sexos, compilou dados históricos do setor de 1995 a 2015 e construiu um retrato evolutivo das noções de raça e gênero associadas ao trabalho doméstico.
Os resultados demonstram a predominância das mulheres negras ao longo do tempo.
Em 1995, havia 5,3 milhões de trabalhadores domésticos no Brasil. Desses, 4,7 milhões eram mulheres, sendo 2,6 milhões de negras e pardas e 2,1 milhões de brancas. A escolaridade média das brancas era de 4,2 anos de estudo, enquanto a das afrodescendentes era de 3,8 anos.
Vinte anos depois, em 2015, a população geral desses profissionais cresceu, chegando a 6,2 milhões, sendo 5,7 milhões de mulheres. Dessas, 3,7 milhões eram negras e pardas e 2 milhões eram brancas. O nível escolar das brancas evoluiu para 6,9 anos de estudo, enquanto, no caso das afrodescendentes, chegou a 6,6 anos.
Ainda hoje o trabalho doméstico é uma das principais ocupações entre as mulheres, que são a maioria no setor em todo o mundo, cerca de 80%. No Brasil, permanece sendo a principal fonte de emprego entre as mulheres.
Claire Hobden, especialista em Trabalhadores Vulneráveis da OIT
Em 2017, o trabalho doméstico respondeu por 6,8% dos empregos no país e por 14,6% dos empregos formais das mulheres. No começo da década, esse tipo de serviço abarcava um quarto das trabalhadoras assalariadas.
Legado da escravidão
O professor e pesquisador americano David Evan Harris é um dos especialistas que defendem que o cenário do trabalho doméstico no Brasil atual é herança do período escravagista.
“O Brasil foi um dos últimos países do mundo a acabar com a escravidão. Se olharmos para quem são as empregadas, veremos que elas tendem a ser pessoas de cor”, diz o acadêmico, formado pela Universidade da Califórnia em Berkeley, nos EUA, e mestre pela USP.
“Analisando cidades como Rio e São Paulo, percebe-se que as domésticas muitas vezes são pessoas que migraram do Norte e Nordeste para o Sul e Sudeste. E, como se sabe, o Nordeste é para onde boa parte das populações de escravos foi originalmente trazida. Há uma situação de dinâmica geográfica, histórica e social que continua até hoje.”
Segundo a historiadora e escritora Marília Bueno de Araújo Ariza, mesmo após a abolição, em 1888, mulheres e homens negros continuaram sendo servos ou escravos informais, o que também deixou seu legado no mercado de trabalho.
Biblioteca do Congresso dos EUA
Segundo historiadores, a sociedade brasileira criou sistema que mantinha negros no trabalho informal para impedir sua ascensão após a abolição da escravatura
As domésticas de hoje são majoritariamente afrodescendentes porque “justamente eram essas pessoas que ocupavam os postos de trabalho mais aviltados na saída da escravidão e na entrada da liberdade no pós-abolição”, afirmou ela à BBC Brasil.
A ideia de ter um servo na família era muito comum, mesmo entre quem não era rico e vivia nas regiões semiurbanas do século 19, segundo Ariza.
“A escravidão brasileira foi diversa, mas foi sobretudo uma escravidão de pequena posse. No Brasil, todo mundo tinha escravos. Quando as pessoas tinham dinheiro, elas compravam escravos com muita frequência.”
Em São Paulo, por exemplo, muitas famílias – mesmo as relativamente pobres, muitas delas chefiadas por mulheres brancas – “tinham uma ou duas escravas domésticas para realizar afazeres na casa ou na rua”.
‘Racismo estrutural’
Ariza acredita que o Brasil do século 21 herdou do passado colonial, imperial e escravista uma “profunda desigualdade na sociedade que não foi resolvida” e “um racismo estrutural”.
Essas duas coisas combinadas nos levam a um quadro contemporâneo que usa racionalmente o trabalho doméstico porque ele é mal remunerado e, até recentemente, não tinha quaisquer direitos reconhecidos.
Marília Bueno de Araújo Ariza
A ratificação pelo Brasil da Convenção Internacional sobre Trabalho Doméstico (convenção 189 da OIT) ocorreu neste mês de fevereiro e foi considerada um avanço na proteção dos direitos desses trabalhadores.
O compromisso vem no lastro da adoção da emenda constitucional 72 de abril de 2013, conhecida como a “PEC das Domésticas”, e da lei complementar 150 de 2015, iniciativas para coibir a exploração, dar mais amparo e formalização ao emprego.
“Apesar dos esforços dos governos recentes em trazer essas empregadas para a formalidade, o que se vê hoje é o aumento da informalidade”, pondera o professor e doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carlos Eduardo Coutinho da Costa.
Na sua visão, que as relações sociais do trabalho doméstico não têm necessariamente vínculo com a escravidão em si, mas, sim, com a dinâmica racial que se estabeleceu após a alforria, a partir de 1888.
“Era muito comum tanto no pós-abolição imediato, quanto ainda nos dias de hoje, as pessoas dizerem (a negros e pobres): ‘ponha-se no seu lugar’. Mas que lugar é esse ao qual os pobres pertencem?”, indaga.
“Quando acabou a escravidão, todas aquelas relações de dominação caíram por terra. Foi um período muito próximo do fim da monarquia também, então todas as relações se modificaram e ficaram pairando no ar. Foi necessário criar uma ordem para manter a hierarquia, e a solução encontrada foi a racialização das relações.”
Para isso, diz ele, foram criados mecanismos na sociedade brasileira “para impedir que certo grupo ascendesse socialmente, porque havia o desejo de construir no Brasil essa relação de classe”.
Brasil tem três empregados domésticos para cada cem pessoas; Índia vem em 2º lugar, em ranking da OIT, com dois empregados para cada cem pessoas
Já que o trabalho formal é um meio de ascensão, as oportunidades nesse âmbito foram administradas por um viés racial, no qual negros foram encaminhados aos postos inferiores, mais precarizados, para que não evoluíssem economicamente, diz Coutinho da Costa.
“Se você pegar os anúncios de vagas daquela época vai perceber que a maior parte especificava a cor da pessoa. Eram empregos normalmente de subalternidade, de trabalho de faxineira, copeira, cozinheira, e pedia-se literalmente assim: procura-se mucama da cor preta para trabalhar em afazeres domésticos”, exemplifica.
“Isso foi se perpetuando na história. Se pararmos pra pensar, até a década de 60 ainda se buscavam pessoas pela cor. Quando isso cai em desuso porque pega mal, abandona-se a terminologia cor e passa-se a usar a expressão ‘boa aparência’, mas o efeito é o mesmo: impedir que um certo grupo tenha acesso ao emprego formal.”
Desigualdade
Em sua tese de mestrado na USP, o pesquisador americano David Evan Harris comparou a relação da sociedade com os trabalhadores domésticos no Brasil e nos Estados Unidos. Para ele, em ambos os países os empregados são explorados, apesar das diferenças culturais.
No Brasil, diz Harris, predomina o discurso da proximidade afetiva, na qual a empregada é tratada “praticamente como se fosse alguém da família”. Já nos EUA, elas costumam ser terceirizadas e recrutadas via empresas de serviços de limpeza. Essa profissionalização daria o distanciamento necessário para que a “culpa” e o “constrangimento moral” das famílias americanas por causa da desigualdade social fossem mitigados.
Se formos observar os diferentes países ao redor do mundo e quantos serviçais eles têm, ou quão predominante a ocupação doméstica é, veremos, grosso modo, que o número de empregadas por porcentagem da população corresponde ao nível de desigualdade daquele país
David Evan Harris
“Há dois fatores majoritários que são muito importantes para avaliar se um país vai ter uma grande população de serviçais. Primeiro, desigualdade e, segundo, acesso a educação de qualidade pública, para que as pessoas consigam alcançar oportunidades que vão além do trabalho doméstico.”
De acordo com a OIT, os Estados Unidos têm 667 mil empregados domésticos, cerca de um décimo do Brasil. Lá, porém, o setor também tem nichos de informalidade, e imigrantes não documentados ficam de fora das estatísticas.
Oficialmente, a segunda nação com maior número de trabalhadores domésticos no mundo é a Índia, com 4,2 milhões de pessoas. A OIT admite, entretanto, que muitos empregados não estão registrados e, considerando-se o tamanho da população, o total verdadeiro poderia chegar a dezenas de milhões, ultrapassando o Brasil.
As cinco maiores concentrações de trabalhadores domésticos ocorrem em nações com marcante contraste social. No ranking da OIT, após o Brasil e a Índia vem a Indonésia (2,4 milhões), seguida pelas Filipinas (1,9 milhão), pelo México (1,8 milhão) e pela África do Sul (1,1 milhão). É importante ressaltar que a China não fornece estatísticas confiáveis sobre o assunto.
Todos esses países que figuram entre os maiores empregadores de serviço doméstico são nações com coeficientes de desigualdade que variam entre médio e alto, segundo o ranking de desenvolvimento humano organizado pelo Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento (UNDP).
A OIT não chega a afirmar que haja uma dinâmica de causa e consequência, mas reconhece que ambos os aspectos – alta incidência de trabalho doméstico e desigualdade social – estão de alguma forma relacionados. Marina Wentzel
Comentários com Facebook