Ao repetirmos as tragédias do cotidiano ao longo dos séculos, estamos também a falsear nosso próprio destino
Karl Marx dizia que a História se repete primeiro como tragédia, depois como farsa. Eduardo Galeano radicalizou dizendo que a História se repete como tragédia, e depois como tragédia de novo. Qual dos dois está certo? Acredito que nenhum dos dois.
A História a que se referiram é interminável, cíclica e inescapável. Ao mesmo tempo em que nela estamos imbricados, podemos também vê-la passar ao largo sem nos afetar, simplesmente porque não existe tragédia como um fim em si mesmo, nem farsa como consequência de uma abstração identitária a essa tragédia.
Ambas precisam ser construídas. No campo das tragédias, é mister separar a força da natureza em suas ações muitas vezes retaliativas às ações do homem (e da mulher, porque não?), nas oportunidades onde são apenas rearranjos naturais de um bioespaço em constante transformação, das tragédias provocadas pelas atitudes deliberadas do animal humano.
Muito antes do nosso surgimento como principal ator do planeta, as tragédias se sucederam. Não é à toa que especialistas afirmam que já ocorreram 5 extinções em massa no passado, sem alarde ou explicações prévias. Uma grande erupção vulcânica, um choque de um meteoro ou um ranger profundo nas placas tectônicas e pronto: a tragédia natural se instaurava, uniforme, precisa e devastadora.
Não havia vencedores, nem vencidos. Apenas a força da natureza assumindo seu lugar onipotente.
Dessa forma, a tragédia natural sempre se construiu na dialética entre a autodestruição e a sua recriação positiva. A tragédia humana, por sua vez, sempre emergiu mais complexa do ponto de vista desse paradoxo. Não se trata de recriação. Pior ainda de reinvenção. No melhor das hipóteses, de reinstauração.
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Recomeçamos para, ao fim e ao cabo, não chegarmos a lugar algum de valor existencial. Ou não é verdade, como diz Eqbal Ahmad, que “vivemos em tempos modernos com mentes medievais”? Eu perfilho dessa sua ideia de um sujeito ultrapassado na época de plenitude do ser humano, mas entendo que ele foi condescendente, pois, a meu ver, a palavra final correta seria “primitivas”.
Então, porque sempre que recomeçamos, ainda que tenham existido momentos de alteridade e altruísmo, escorregamos na mesma lama egocêntrica e egoísta a partir da qual percebermos o mundo? Talvez, no futuro, mentes mais perspicazes deem respostas mais apropriadas. Por enquanto, na minha visão, a resposta para essa pergunta passa pela nossa incapacidade, enquanto espécie, de transformar o “ser” humano”, em “saber” humano.
Precisamente por nunca termos atravessado a barreira subjetiva da existência temporal, a morte, nunca conseguimos chegar na concretude da ressignificação do sujeito pleno em atitudes e consciência do seu bem-maior: a posteridade viabilizada! No terreno da farsa, não basta ter ciência dos valores e práticas que cada atividade exige de nós, enquanto donos do poder geral e global, sem um real sentido dos anseios que essas atividades nos alcança.
Ou seja, de nada vale manter o discurso do “possível” nas ações que precarizam, ou até relativizam, as consequências de um paradigma insustentável de vigência civilizatório para todos. Valter Hugo Mãe está correto quando afirma que “não existe humanidade na solidão”, pois a sua perspectiva é humanista e não antropocêntrica.
Ao repetirmos as tragédias do cotidiano ao longo dos séculos, estamos também a falsear nosso próprio destino que poderia (poderá?) ser inconteste na história desse planeta, levando-nos a uma auto-dizimação, e o que é ainda pior do ponto de vista biológico, carregando conosco talvez a maior parte da vida na terra. Dito isso, se revirarmos nossa existência como se vira um espelho, constataremos que, ao longo dessa curta trajetória humana, em termos de presença real, não fomos capazes de detectar, antever ou decifrar os mistérios que as oportunidades mundanas nos ofereceram para salvaguardar nossa perpetuação, assim como nunca fomos capazes de enxergar o que o espelho refletia virado contra nós.
Uma tragédia isso!
E mesmo o espelho virado a nosso favor, jamais fomos magníficos na auto-percepção do que escondemos dele. E assim, tragédia e farsa se completam, se entrecruzam, dialeticamente, na história viva do sujeito humano, para lembrá-lo de que a reação à tentativa de usufruir solitariamente das benesses que suas conquistas tecnológicas trouxeram, esmagando até grande parte dos seus semelhantes, não será mitigada por momentos transitórios de lucidez e de boa-vontade.
Seria preciso que esses últimos tivessem sido regra, e não exceção. Até agora não foram. E se assim continuar sendo, o legado das nossas pegadas como espécie será o da sexta extinção, como bem nos ensina a cientista e escritora Elizabeth Kolbert.
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