Ronaldo Lemos – advogado*
A acusação de estupro que recai sobre o atacante Neymar e o estigma sobre a suposta vítima mostram como a internet se aprofunda cada vez mais como um gigantesco coliseu. Nele são atirados os destinos pessoais e profissionais de qualquer pessoa –anônima ou famosa– para que sofram julgamento e sirvam de espetáculo. Tudo até que sejam substituídos pelos próximos a serem atirados ao coliseu, que certamente virão e logo.
O que chama a atenção no caso Neymar é que ele traz sinais claros de que há uma “institucionalização” do tribunal da internet. É como se a internet já tivesse se normalizado como lugar de julgamento. Começa a surgir até um “processo” a ser seguido pelas “partes”.
A suposta vítima faz sua acusação, que é repercutida na rede. O acusado elabora e publica sua defesa também na internet. O julgamento é então imediato. Realizado por uma multidão de observadores que se divertem, ao mesmo tempo em que proferem sua sentença irrecorrível.
No tribunal da internet, não existe apelação nem julgamento em segunda instância. Ele funciona da mesma forma que a multidão sedenta por fazer justiça com as próprias mãos no filme clássico “M, o Vampiro de Dusseldorf”, de 1931.
Enquanto tudo isso acontece em velocidade imediata, as instituições legais que deveriam efetivamente investigar e julgar a questão atuam em completo descompasso com relação ao espetáculo que se desenrola.
Até agora, o caso Neymar foi noticiado com a seguinte sequência de fatos. Há a acusação de estupro, que repercute globalmente. Na sequência, há uma defesa inusitada do jogador. Em vez de seguir o playbook mais comum em casos similares, em que o acusado solta uma nota impessoal por meio de assessoria de imprensa, defendendo-se das acusações, Neymar decidiu seguir por outro caminho.
Utilizando o alcance global de suas mídias sociais, divulgou um vídeo em que aparece ele próprio se defendendo. Ao final, divulga as “provas”. Elas são protocoladas não em uma instituição legal, mas no próprio no tribunal da internet. Trata-se de mensagens privadas e fotos íntimas (editadas) enviadas a ele pela suposta vítima.
Do ponto de vista legal, a conduta é tipificada como crime pelo artigo 218-C do Código Penal, que atribui pena de 1 a 5 anos para “publicar ou divulgar, por qualquer meio fotografia ou outro registro que contenha cena de sexo, nudez ou pornografia sem o consentimento da vítima”.
O jogador ter postado as fotos desfocadas ou editadas eliminaria a conduta criminosa? Ou ainda, o fato de as fotos terem sido postadas como mecanismo de defesa afastaria o crime? A única resposta até agora é que o destinatário do vídeo de defesa não foi o poder judiciário ou uma autoridade de investigação. Mas, sim, o próprio tribunal da internet.
Essa situação coloca a todos nós em um dilema. As instituições legais criadas ao longo do século 20 foram bem-sucedidas em superar a turba enfurecida retratada no filme “M”, por meio da institucionalização, por exemplo, do devido processo legal, do direito de defesa, da limitação da pena e do duplo grau de jurisdição.
Essas mesmas instituições hoje não dão conta das turbas digitais. Os julgamentos são imediatos. Não há defesa. A pena é implacável e ilimitada temporalmente. No caso Neymar, tanto o jogador quanto a suposta vítima estão provando do coliseu. A miséria dessa situação é não só deles, mas de todos nós.
* Ronaldo Lemos – é advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro. Artigo originalmente publicado na edição de hoje, 3, da “Folha de São Paulo”.
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