A rua é estreita, com apenas uma quadra. O movimento de gente e carros, intenso. O flanelinha interrompe o vaivém do trânsito para que a van manobre e entre de ré pelo portão. A cena se repete de 15 a 20 vezes todos os dias.
O local, um amplo sobrado de cor bege, não tem placa ou qualquer indicação. Poderia ser um escritório de advocacia, uma escola, o centro administrativo de um shopping center ou estúdio de dança.
O que as centenas de pessoas que transitam pela rua não imaginam é que, mensalmente, cerca de 500 cadáveres entram e saem por aquele portão. A especialidade da casa é a prática da morte. Trata-se de um laboratório de tanatopraxia.
“O sentido etimológico da palavra tanatopraxia é justamente esse, prática da morte”, explica Clayton Marchioro, 51 anos e há 20 expert no assunto. Ex-bancário, tentou a sorte como vendedor de calçados, mas fracassou.
Em 1994, na pequena Rio Branco do Sul, cidade da região metropolitana de Curitiba, vislumbrou que a morte poderia ser um rentável nicho de mercado e montou uma pequena funerária. Foi assim, na prática, que descobriu as dificuldades vividas por familiares na hora de enterrar seus mortos.
A técnica da tanatopraxia surgiu nos Estados Unidos, em 1846. Para conservar os cadáveres usados em aulas de anatomia, o médico e professor Wesley Wallace injetou nos corpos uma solução à base de zinco. Mas o avanço da ciência deu-se entre 1861-1865, durante a Guerra Civil americana.
Para devolver os cadáveres às famílias das vítimas, o médico Thomas Holmes embalsamou corpos de mais de 4 mil soldados. A prática fez com que ele desenvolvesse novos processos e produtos.
Até que, em 1922, o também médico e professor C. M. Lukins, do Pulte Medical College, em Cincinnati, Ohio, criou a Cincinnati School of Embalming, escola especializada na arte de embalsamar, considerada a pioneira nos Estados Unidos. No Brasil a novidade chegou em 1995.
Curioso, Marchioro, então um novato no setor, encomendou um livro, em inglês, que ele mesmo se encarregou de traduzir e transformar em uma apostila prática para uso próprio. Importou equipamentos e instrumentais para o trabalho. Com o passar do tempo, viu-se obrigado a fazer a manutenção dessas ferramentas, para depois vender seus serviços a terceiros.
Logo se tornou um especialista no assunto e, hoje, além do laboratório em Curitiba, presta consultoria para mais de 50 funerárias em todo o Brasil. Sua obra mais recente foi a publicação do livro Tanatopraxia – Teoria, prática & legislação, em parceria com o médico e professor mineiro Sérgio Fiuza.
A técnica, segundo ele, “é simples”. Faz-se uma incisão na virilha, chamada de área inguinal, e com uma espécie de bomba injetora é introduzido no cadáver um produto à base de formol. O líquido espalha-se pelo corpo e elimina todas as bactérias.
Outra prática comum, além da necromaquiagem, que consiste na maquiagem com batom, pó ou corretivo de pele, é a recomposição do corpo, notadamente a face, com moldes de borracha ou pele sintética em caso de acidentes ou mortes violentas.
Marchioro explica que, além da questão social e psicológica a envolver os preparativos de um funeral, a tanatopraxia tem uma função importante para o meio ambiente e a saúde pública. Após o sepultamento, o corpo expele um líquido chamado necrochorume, resultante da decomposição natural do organismo.
Esse material, que pode conter vírus provenientes da moléstia que ocasionou o óbito, corre o risco de contaminar o aquífero freático da área que circunda o cemitério. “Isso é comprovado cientificamente”, assegura.
Cita como exemplo o ebola, epidemia que assolou alguns países africanos. Nessa situação, os corpos das vítimas não podem ser tocados nem expostos em velório, para evitar qualquer tipo de contaminação. Caso fossem submetidos à tanatopraxia, o risco de transmissão seria zero.
Da convivência diária com a morte ele tirou grandes lições. “Vislumbrar a tragédia tão de perto me ensinou a valorizar cada segundo. Dizer um até logo ou até amanhã pode ser o sinônimo de um adeus. Por isso vivo intensamente os meus dias.” Ainda guarda momentos que o emocionam. Em um dos primeiros velórios, um pai, a seu lado no carro funerário, levava o filho de 7 anos, morto por um câncer.
E lembrava o último desejo da criança: “Meu filho pediu que eu não chorasse, porque durante sua vida eu fiz tudo o que ele queria”. O ex-bancário, com os olhos vermelhos, engole seco, força um sorriso e dispara: “Por isso a gente tem de saber ser feliz”.
Fonte: Carta Capital
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