A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, jogou lenha no debate eleitoral, principalmente no Pará – se é que candidatos como Helder Barbalho, Márcio Miranda e Paulo Rocha não fugirão do tema polêmico – ao ingressar ontem no Supremo Tribunal Federal (STF) com ação direta de inconstitucionalidade contra a renovação antecipada da concessão de ferrovias no país, especialmente na região de Carajás, onde num trecho de 892 km a empresa Vale fatura bilhões, exportando por meio do porto de Itaqui (MA) o ferro extraído das montanhas de Parauapebas e Canaã dos Carajás, no Pará.
Como até as mangueiras de Belém sabem, num golpe criminoso contra os interesses do Pará, o governo de Michel Temer, por meio do Conselho de Parcerias Públicas de Investimentos (PPI) da Presidência da República, liberou a renovação por mais 30 anos da concessão da Ferrovia de Carajás para a mineradora Vale, transação que vai gerar R$ 25 bilhões aos cofres federais.
O problema é que o Pará foi alijado do investiumento de parte desse dinheiro – cerca de R$ 4 bilhões – que será empregado na construção da Ferrovia de Integração do Centro Oeste, ligando Água Boa no MT a Campinorte, em GO. Quando a noticia foi divulgada, em julho passada, políticos do Pará e caciques partidários, que nada fizeram para impedir esse enorme prejuízo ao estado, começaram um debate acalorado sobre supostas compensações pela perda sofrida.
Jader e Helder Barbalho manifestaram indignação pelas redes sociais, foram à Brasília, reuniram com Temer e voltaram com um “cala-boca”: Temer prometeu que a ferrovia Norte-Sul terá um braço até Barcarena. Ou seja, passará dentro do território paraense, trazendo “progresso e desenvolvimento”. Conversa para boi dormir.
O governador Simão Jatene, preocupado com a candidatura de Márcio Miranda, também atirou na direção do sol – como fez o personagem do cineasta francês Jean Luc Godard -, reivindicando que os R$ 4 bilhões da compensação que a Vale terá de desembolsar ao estado, fosse investido na ferrovia que o secretário Adnan Demackhi idealizou para rasgar o sul do Pará até Barcarena. E atacou a solução jaderista da ferrovia Norte-Sul, dizendo que ela “não interessava ao Pará”.
A ação de Dodge
Segundo Raquel Dodge, a ação direta de inconstitucionalidade é contra a lei 13.334/2016, que estabelece diretrizes gerais para a prorrogação antecipada de contratos de concessão ferroviária. Para ela, a lei “contém dispositivos que contrariam os princípios constitucionais da eficiência, da impessoalidade, da moralidade e da razoabilidade, além de violar a regra da licitação e comprometer a qualidade dos serviços oferecidos à sociedade”.
A lei é fruto de conversão da Medida Provisória 752/2016, que previu a possibilidade de prorrogação antecipada dos contratos, mediante a realização de investimentos não previstos nos contratos originais e o atendimento de determinadas condições. Para a PGR, no entanto, os requisitos previstos na lei são insuficientes para assegurar a prestação de serviço adequado pelas concessionárias, com prejuízo ao interesse público e aos usuários do transporte ferroviário. “Os requisitos objetivos para a prorrogação antecipada favorecem concessionárias que não lograram, nos últimos anos, executar corretamente e com eficiência o contrato de concessão”, alerta.
O tema é acompanhado desde 2016 pela Câmara de Consumidor e Ordem Econômica do Ministério Público Federal. O órgão já havia alertado a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) sobre a necessidade de avaliar, nos processos de prorrogação antecipada, a vantagem econômica da medida frente à realização de nova licitação; a exigência de efetiva quitação prévia dos valores devidos pelos atuais concessionários; e os os impactos da escolha para a integração da malha nacional.
A ação de inconstitucionalidade proposta pela procuradora-geral tem a mesma preocupação: assegurar que eventual prorrogação dos contratos de concessão ferroviária seja realizada dentro da lei e tendo em vista, em primeiro lugar, o interesse público. “A edição de ato que beneficia o interesse particular na prorrogação de contrato, em detrimento do interesse público na prestação de serviço eficiente e adequado, ofende os princípios da impessoalidade e, paralelamente, da moralidade”, afirma Dogde na ação.
Além da ADI própria, a procuradora-geral também enviou ao Supremo parecer na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5684/DF, que discute o mesmo tema. A ação foi proposta pela Frente Nacional Pela Volta das Ferrovias (Ferrofrente) e pela Federação das Associações de Engenheiros Ferroviários, e tem como relator o ministro Dias Toffoli. Preliminarmente, Raquel Dogde afirma que as entidades não possuem legitimidade legal para propor esse tipo de ação. No mérito, no entanto, reafirma o posicionamento pela inconstitucionalidade da MP 752 e da lei dela derivada.
Relativização – Um dos pontos destacados por Dodge como potencialmente lesivo à qualidade do transporte ferroviário nacional é a redução que a nova lei fez do conceito de “serviço adequado”, requisito que será avaliado pelo governo nos pedidos prorrogação antecipada. Pelo contrato original firmado com essas empresas, a análise desse item deveria levar em conta uma série de fatores, como regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade e cortesia dos serviços prestados ao longo dos vários anos da concessão, além do valor das tarifas impostas aos usuários.
Com a nova lei, no entanto, essa análise fica reduzida ao cumprimento de metas de produção e segurança, considerados apenas três dos últimos cinco anos de execução contratual ou, alternativamente, ao cumprimento apenas da meta de segurança, considerados quatro dos últimos cinco anos de prestação do serviço. “As condições específicas exigidas pela Lei 13.448/2017 alteraram, portanto, exatamente os critérios e conceitos que, nos termos do contrato vigente, constituem condicionantes para a concessionária pleitear a prorrogação contratual no forma originalmente pactuada”, ressalta a PGR.
Na mesma linha, o coordenador da Câmara de Consumidor e Ordem Econômica do MPF, subprocurador-geral da República Augusto Aras, alerta que a avaliação isolada desses quesitos, num curto espaço de tempo, é incapaz de permitir um diagnóstico real da qualidade do serviço prestado pelas concessionárias que agora pleiteiam a prorrogação contratual. Exemplo disso é que, apesar do histórico de multas e sanções impostas a grande parte dessas empresas – seja pela má qualidade dos serviços ofertados, seja pelo não cumprimento das contrapartidas devidas ao Estado e à sociedade –, todas atendem aos critérios de qualificação exigidos pelo governo no contexto da lei atual.
Insegurança jurídica – A ação da PGR contrapõe o argumento de que a medida provisória seria necessária para assegurar a prestação do serviço e os investimentos dos atuais concessionários até o término dos contratos vigentes. Para Dodge, essa obrigação existe “ independentemente de haver ou não possibilidade de prorrogação”. A procuradora-geral afirma, ainda, que a ampla repactuação contratual, permitida pela nova lei, traz insegurança jurídica ao mercado. “A prorrogação antecipada, nesses termos, ofende, ainda, a regra da licitação e o princípio da competitividade, afastando potenciais interessados em prestar o serviço”, completa.
A PGR alerta também para o risco de dilapidação do patrimônio da União, por meio da “doação” indevida de ativos operacionais, móveis e imóveis, às atuais concessionárias, sem o respeito às formalidades legais necessárias. Isso porque a lei 13.448/2017 previu a extinção dos contratos de arrendamento desses ativos, com a respectiva transferência não onerosa dos bens operacionais e não operacionais ao contratado, sem exigir sequer prévio inventário dos bens transferidos. “A falta de inventário dos bens transferidos sem ônus aos contratados, aliada à possibilidade de livre disposição do referido patrimônio, representa, porém, verdadeira doação de bem público sem qualquer formalidade e sem possibilidade de fiscalização”, aponta a ação.
Urgência – A PGR afirma que a questão é urgente, já que eventual prorrogação antecipada de contratos ineficientes por mais 30 anos além do prazo originalmente estabelecido pode trazer danos irreparáveis aos cofres da União e à população. Em razão disso, pede a concessão de medida liminar para a suspensão imediata dos dispositivos questionados (art. 6º, §2º, II; art. 25, §1º e §§3º a 5º e art. 30, §2.º da Lei 13.448/2017) até o julgamento final da ação direta de inconstitucionalidade. (Do Ver-o-Fato, com informações da PGR)
Confira a íntegra do parecer na ADI 5684
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