Não, não falavam português, ela decidiu. Aquilo podia ser qualquer coisa, exceto português. As palavras não se conectavam. As conjunções não faziam sentido. Os advérbios estavam desconexos. Os substantivos estavam fora de lugar. Era uma loucura total. Rui Barbosa se remexeu no túmulo, a alma de Machado ardeu. Por que assassinavam a língua portuguesa? A preciosa língua. Tão complexa, tão bela, tão séria. A língua. Os acentos, as virgulas, os dois pontos, os travessões, ponto e vírgula. Ela lamentou.
Foi aí que começou a rebelião da língua. Tentavam escrever, mas as palavras não vinham. Os teclados digitais não respondiam. As letras, rebeldes, pulavam para fora dos aparelhos modernos e ninguém entendia mais nada.
Chamaram um padre para o exorcismo. Água benta para cá, água benta para lá e percebeu que nem Deus podia parar a rebelião das palavras. A Bíblia, inclusive estava em branco. As letras foram vistas embarcando todas juntas para uma praia do caribe. Quando alguém questionou a letra A, a mais popular de todas, ela respondeu: – Esqueçam de nós, todos vivem e agora é a nossa vez.
A humanidade estava em pânico. Já não havia mais livros. A imprensa nem tinha o que escrever. Aliás, tinha o que escrever, mas não havia mais língua para tanto. O país virou um caos. O presidente decretou calamidade pública e, em seu pronunciamento oficial, falou até em devolver o país para os índios. Não havia mais para onde ir.
Um repórter conseguiu uma entrevista inclusive com a sintaxe. Ela fez um emocionado pronunciamento: -Não pretendemos voltar. Não nos deram valor. Estávamos por aí o tempo todo. Nos livros, nos dicionários, na internet. Todos nos viam, mas não nos queriam, de fato. Agora somos independentes. A nossa rebelião é definitiva. Lembro ainda de como preferiam mandar áudios no Whatsapp. Bom, nós cansamos de tanta tristeza. Somos a língua e precisamos do mínimo de respeito. #nãovoltaremos
E não voltaram. Com o passar dos anos, o país regrediu. Os séculos passaram e ninguém sabia mais falar. Milênios depois e os humanos emitiam apenas grunhidos. Centenas de milhões de anos após a rebelião, todos voltaram a ser macacos.
A língua foi vista com a sua sintaxe, seus pontos, suas letras, sua imortal existência toda bronzeada no caribe. A língua, imortal, viu o fracasso do homem, a regressão. Não há homem sem língua, mas agora não existe mais ninguém para saber disso.
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