O Brasil é, agora, o epicentro global da tragédia da Covid-19. O país registrou, na quarta-feira, 2.349 mortes pela doença num único dia. É o pior número de toda a pandemia, marca que foi alcançada exatamente a um dia de completar um ano em que ela foi oficialmente decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Até então, os Estados Unidos eram o único país que havia registrado mais de 2 mil mortes pelo vírus em um único dia, sem que houvesse problema de fluxo de dados. Isso ocorreu em 88 ocasiões diferentes, 20 durante a primeira onda da pandemia, entre março e abril, e outras 68 de novembro até a semana passada. Os EUA, porém, estão em tendência de queda agora, diferentemente do Brasil. A Índia, o México e a Argentina também chegaram à marca, mas, no caso deles, havia dados represados a serem computados, os altos índices eram pontos fora da curva.
No Brasil, o registro é consistente com o histórico recente, com seis dias de superação de 1.500 óbitos nos últimos dez dias. O país segue na contramão do resto do mundo, com o avanço da doença descontrolado e em franco crescimento. O país também superou ontem os EUA, que têm uma população 55,9% maior, no número de novos casos diários e na média móvel semanal de mortes. Ontem, segundo o consórcio de veículos de imprensa, foram 80.955 novos infectados, puxados sobretudo pela explosão de casos em São Paulo e nos estados do Sul.
Para a microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência, a marca de 2 mil mortes em um dia era esperada.
— Esse aumento acentuado acontece porque a gente ainda está colhendo consequências de Natal, Ano Novo, férias e Carnaval, um em cima do outro, com as pessoas se expondo mais — afirma a pesquisadora.
Brasil é a nova China
Em 11 de março de 2020, a China era o foco da preocupação planetária. Agora, o Brasil, recordista de mortos, sem controle da transmissão, sem vacinas suficientes e berço de uma das mais perigosas variantes do coronavírus, a P1, é a nova China no que diz respeito à pandemia. Ontem, Carissa F. Etienne, diretora da Organização Panamericana da Saúde (Opas), disse que a instituição está “preocupada com a situação do Brasil”.
— O avanço de casos e mortes tem se dado em ritmo mais acelerado do que o previsto. Não adianta só oferecer leitos quando as pessoas já estão morrendo na fila. É preciso conter o vírus — diz o pesquisador da USP de Ribeirão Preto Domingos Alves, do portal Covid-19 Brasil. Alves foi o primeiro a vislumbrar que o país entrava numa segunda onda, no início de novembro.
Para a epidemiologista Gulnar Azevedo, presidente da Associação Brasileira de Saúdo Coletiva, os números atuais da pandemia são reflexo de “fracasso” da resposta do governo federal à pandemia.
— Não era para o Brasil estar nesta situação. Essa quantidade de óbitos é inaceitável A gente já vinha alertando há muito tempo e dizendo que viria a crescer — lamenta.
A maior parte do planeta começa a ver um horizonte menos sombrio com as vacinas e a redução do passo da pandemia em países antes duramente atingidos, como Reino Unido, EUA, Portugal, Itália e Espanha. No Brasil, no entanto, os próximos dias serão bem duros: integrantes do Ministério da Saúde avaliaram, de acordo com reportagem do Valor Econômico da última sexta-feira, que o Brasil ainda registraria, nas duas semanas seguintes, mais de 3 mil mortes por dia.
Com 1.572 óbitos diários registrados na última semana e em tendência de alta, o Brasil agora é o país mais atingido pela pandemia. Os EUA, o país com maior número de casos, vem reduzindo drasticamente a transmissão desde que Joe Biden assumiu a presidência. A média móvel de março caiu 75% em relação a janeiro.
O Brasil não só vacina pouco — apenas 5,48% da população foi vacinada — como é o país em que o vírus mais avança.
— Era para termos pelo menos de 40 milhões a 50 milhões de pessoas vacinadas. Em vez disso, temos um um cao — lamenta a sanitarista e epidemiologista Carla Domingues, que esteve à frente do Programa Nacional de Imunizações (PNI) por oito anos (2011-2019).
O Brasil se tornou o exemplo maior de tudo o que poderia dar errado, diz Alves:
— A sociedade se espelha em seus governantes. Nos EUA, a pandemia caiu porque o novo governo deu o bom exemplo. Aqui, temos o contrário. Em um ano tivemos um genocídio.
O Brasil, que já teve um dos melhores programas de vacinação mundo, se mantido o atual ritmo, levará 949 dias ou mais de dois anos e meio, para vacinar toda a população, segundo o MonitoraCovid-19, da Fiocruz. Ontem, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, reduziu mais uma vez a previsão de vacinas que serão distribuídas a estados e municípios em março: ele citou, em discurso, uma previsão entre 22 e 25 milhões de doses. Na segunda-feira, ele havia dado uma estimativa de ter de 25 a 28 milhões no mês.
O ano da pandemia viu a China controlar o vírus em seu território e se tornar uma das maiores fabricantes de vacinas. Viu os EUA, até março de 2020 considerados um dos países mais preparados do mundo, se tornarem o epicentro da pandemia. Porém, com mudança de política e vacina, os EUA mudaram o jogo. A epidemiologista brasileira Márcia Castro, professora da Universidade Harvard, disse em entrevista ao podcast Ao Ponto que a posse do presidente Biden envolveu uma “mudança radical de postura”, e os EUA começam a perder a semelhança com o Brasil de Bolsonaro.
Natalia Pasternak diz que a pressão de governadores e prefeitos pode surtir efeito no país, mas o governo federal precisa agir em conjunto:
— Este cenário coloca o Brasil numa posição de risco sanitário global. Um país do tamanho do nosso com a pandemia descontrolada pode virar uma grande sopa de novas variantes preocupantes do vírus, com consequências geopolíticas, sociais e econômicas.
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