Antonio Martins – Outra tempestade global está armada, com epicentro na Itália. Como evitar que resulte, outra vez, em mais desigualdade e pobreza? Há saída pós-capitalista?
Uma tempestade financeira global está se armando, num horizonte não distante. A revistaEconomist dedica a capa desta semana à quebra dos bancos italianos – a começar pelo Monte dei Paschi, de Siena, a instituição financeira mais antiga do mundo em funcionamento. A crise tem também um viés político. A falência dos bancos italianos, que ocorrerá fatalmente, caso não haja intervenção, afetaria milhões de poupadores. Mas a opinião pública europeia – especialmente nos países do Norte – rejeita novas ações de salvamento das finanças com dinheiro público.
Reuniões de urgência estão sendo realizadas nestes dias. O peso da economia italiana – a quarta maior da Europa – poderia tornar o país epicentro de um tremor maior. E a situação da Europa já não é fácil. Até o poderoso – e sempre draconiano – Deutsche Bank, de Frankfurt, é hoje considerado pouco seguro. Sofreu grandes prejuízos, demitiu milhares de trabalhadores, está extremamente “alavancado” – ou seja, dependente de capitais de terceiros. Os gráficos mostram que seu valor de mercado é agora apenas um décimo do que foi antes da crise. A situação agravou-se após a sensação de incerteza desencadeada pelo Brexit – a saída da Grã-Bretanha da União Europeia.
Mas por que a economia global voltou a ficar ameaçada? Tudo indica que as causas estão na desigualdade crescente – esta marca da qual o capitalismo contemporâneo não parece capaz de se livrar. Na verdade, as saídas adotadas diante da crise de 2008 são a gasolina que está alimentando o incêndio de agora.
A partir de 2009, houve duas respostas à crise. A primeira foram as mal-chamadas políticas de “austeridade”, que começaram exatamente na Europa. Em quase todos os países, houve ataques aos direitos sociais, às aposentadorias e em especial aos serviços públicos. As sociedades protestaram, mas não foram ouvidas. A democracia está esvaziada. A diminuição abrupta do gasto estatal provocou desemprego e recessão.
A segunda resposta foram as políticas em favor dos bancos e à aristocracia financeira. Primeiro, os Estados destinaram montanhas de dinheiro – trilhões de dólares – para salvar instituições falidas. Depois, vieram as ações de quantitative easing. Os bancos centrais dos Estados Unidos, da Europa e do Japão tentaram estimular suas economias imprimindo outros trilhões de dólares. Mas este dinheiro não fluiu para as populações. Foi usado para comprar antecipadamente títulos da dívida pública, possuídos pelos mais ricos. Ou seja, foram trilhões de dólares novamente destinados ao chamado 1%.
Este dinheiro correu o mundo, de modo especulativo. Os muito ricos são incapazes de consumir o que ganham. Em vez disso, despejam o dinheiro em ações, moedas, mercados de futuros de commodities, imóveis. O quantitative easing serviu, por exemplo, para elevar os preços dos alimentos, da casa própria, do aluguel.
As populações perderam, portanto, duas vezes. De um lado, com o corte de direitos sociais, de serviços públicos e com o desemprego. De outro, com a inflação de alguns bens e serviços que pesam no orçamento.
Com aperto no consumo, as economias sofrem. Segundo dados recentes do FMI, o crescimento global, que havia sido de 3,7% ao ano, entre 2000 e 2010, caiu para 2,4% ao ano, a partir de 2012. Esta média é enganosa. A China, por exemplo, desacelerou mas continua crescendo mais de 7%. Já o Brasil sofre, há dois anos, a recessão mais profunda de sua história. Há, em todo o mundo, cada vez mais gente morando na rua, desemprego, empresas quebrando.
Há também, em consequência, uma explosão de dívidas, escancarada num artigo recente do Los Angeles Times. Primeiro, a dívida dos governos, devido ao pagamento de juros. Ela dobrou, desde 2008, e chegou agora a 59 trilhões de dólares.
Mas também explodiu a dívida dos consumidores, das empresas e dos próprios bancos. Ela é hoje de R$ 199 trilhões, segundo um estudo do Instituto McKinsey. Veja o caso dos Estados Unidos, examinado em detalhes pelo Los Angeles Times. As dívidas com hipotecas caíram um pouco, a partir da crise. Mas explodiram, por exemplo, os débitos dos estudantes, com mensalidades escolares.
Para este cenário, há duas saídas. O primeiro é o dos mercados. No caso italiano, o mais urgente, a revista Economist está alarmada. Diz que uma quebra, logo após o Brexit, poderia provocar a desintegração do euro. E sugere: 1. Oferecer, em caráter de emergência, mais dinheiro público aos bancos em dificuldades; 2. Exigir, como contrapartida, mais concentração de riquezas – com compra dos bancos regionais pelos maiores – e mais políticas de “austeridade”.
No sentido oposto, a crise oferece uma oportunidade de rever e renovar os programas da esquerda para superar o capitalismo. Um ponto muito negligenciado nas abordagens tradicionais são as finanças, seu papel e as alternativas. No capitalismo contemporâneo, é também nesta esfera – muito mais do que nas fábricas – que se gera mais-valia, se acumula riquezas, se constrói desigualdade. Um programa de transformações atual não pode negligenciar a necessidade de construir um novo sistema financeiro e também monetário.
Os trilhões gastos pelo Estado para salvar bancos, e em seguida para promover oquantitative easing expõem o caráter político do dinheiro. É preciso dessacralizá-lo. Ele não é uma mercadoria padrão, neutra e intocável Ele é, ao contrário, uma relação política.
Assim como os governos emitiram verdadeiras montanhas de dinheiro em favor dos bancos, eles teriam todos os meios necessários para fazê-lo em favor das sociedades. Um caminho muito concreto para isso é criar políticas consistentes de Renda Cidadã, por meio das quais cada ser humano – pela simples condição de ser humano – recebe um valor mensal suficiente para uma vida frugal, porém digna. É tão possível quanto dar dinheiro aos bancos. É muito muito mais justo ética e socialmente. E movimenta a economia, porque é dinheiro gasto e não entesourado ou destinado à especulação. Um cálculo do site Swiss Info, ainda em 2009, mostrou que só nos primeiros meses de socorro aos bancos, os Estados gastaram 10 trilhões de dólares. Seria suficiente, diz o estudo, para pagar a cada habitante do planeta US 1422 – aproximadamente R$ 4,5 mil.
Uma segunda maneira é promover o que Jeremy Corbyn, o ousado líder do Partido Trabalhista britânico, chamou de Quantitative Easing for People. Diz Corbyn: ao invés de despejar dinheiro nos bancos, por que não alimentar, por exemplo, os sistemas públicos de Educação, Saúde, construção de moradia e outros?
Infelizmente, tanto estas informações sobre a crise bancária e suas causas quanto o debate sobre as alternativas estão muito atrasados no Brasil. Para a mídia, o assunto único é a corrupção – os grandes temas globais são um universo paralelo. Para parte da esquerda, agenda política ainda se limita às disputas institucionais por um Estado que, como em todo o mundo, é uma máquina de favorecer a aristocracia financeira. Mas se outro mundo é possível, talvez o sejam também outro debate público – e outra esquerda…
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