A extração predatória de madeira na Amazônia é vilã histórica da preservação da floresta. O manejo sustentável trouxe novas perspectivas para esse velho embate, mas ainda hoje a ilegalidade permeia 90% da produção.
A indústria da exploração sustentável de madeira na Amazônia é relativamente recente. Ela chega para trazer controle a um cenário de desordem e ilegalidade, principalmente a partir da década de 1980. Dá-se o nome de manejo sustentável ao conjunto de práticas para corte de madeira que respeita o tempo de regeneração da floresta. Na Amazônia, o volume é limitado a partir de um cálculo numérico. Em geral, são 30 metros cúbicos de madeira, ou cerca de quatro a seis árvores por hectare, em ciclos de 35 anos. A extração também obedece a regras de escolha das espécies para evitar a extinção das raras e preservar a fauna. Há duas formas legais de se explorar madeira na Amazônia. Em florestas públicas funciona o modelo de concessão, em áreas privadas, por meio de planos de manejo autorizados pelos estados.
A Lei de Concessão de Florestas data de 2006, mas as primeiras autorizações de extração começaram a ser concedidas às empresas em 2008. De lá para cá, seis florestas nacionais nos estados do Pará e Rondônia entraram nesse regime, somando 1 milhão de hectares. A meta até 2022 é de multiplicar o volume atual, passando para 7 milhões de hectares de floresta, segundo dados do Serviço Florestal Brasileiro, órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente que cuida do programa de concessões florestais na Amazônia.
No caso de áreas privadas, um produtor que deseja extrair de forma sustentável a madeira de sua Reserva Legal – a floresta preservada por lei no interior de propriedades – entra com um pedido na Secretaria de Meio Ambiente do estado. Informações sobre a área a ser explorada, o tipo de floresta e as espécies de flora e fauna que nela predominam devem ser reunidas em um documento chamado plano de manejo. Aprovado esse plano, o produtor está habilitado a entrar para o sistema legal de comércio de madeira no Brasil, por onde circularam, segundo dados de fiscalização de transporte do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), 4,8 bilhões de reais em 2015. O problema é que, estima-se, a metade dessa indústria é de exploração
Escondidos em pontos isolados da floresta, pátios e serrarias não escapam de ações de fiscalização de grande porte, em operações que envolvem o Ibama e a Polícia Federal, entre outros órgãos do governo brasileiro. Mas combate e monitoramento não são suficientes para coibir o desmatamento e a degradação: é preciso investir, também, em um modelo de desenvolvimento mais sustentável para a região. / Fotos de: Bruno Kelly
POR QUE A EXPLORAÇÃO ILEGAL PREDOMINA?
O controle funciona assim: cada plano de manejo determina o quanto de madeira poderá ser explorado em determinado período. A quantidade se reverte em créditos no sistema eletrônico em nome do proprietário. Uma vez que essa madeira vá sendo cortada e transportada, é preciso dar baixa no sistema, o que debita o valor daquela conta. “Na hora da venda, vira uma transferência eletrônica. Você passa o crédito dessa madeira para o nome de quem a comprou”, explica Jair Schmidt, coordenador de fiscalização do Ibama.
Quem cuida do sistema são os órgãos estaduais, os mesmos que autorizam os planos de manejo. Para Jair, está aí o problema: “Há muitas brechas para fraudes”, diz. Desde a autorização de planos de manejo falsos até casos de invasão por hackers, há diversas formas de se perpetuar o comércio ilegal de madeira na Amazônia. A mais comum das práticas é superestimar o volume de madeira que existe em determinada área com a finalidade de gerar créditos extras no sistema. O dono dos créditos poderá usá-los, então, para a exploração ilegal de outra floresta.
“Estima-se que, por ano, cerca de 9 milhões de metros cúbicos de madeira, o equivalente a 30 mil hectares de floresta, são dados à exploração pelas secretarias de estado. A suspeita é de que a metade dessa madeira venha de área de exploração ilegal”, diz Jair. Pedro Moura Costa, presidente da Bolsa de Valores Ambientais, a BVRio, criada para promover instrumentos de mercado que auxiliem o crescimento da economia verde no Brasil, vai além. Segundo ele, as irregularidades permeiam 90% da cadeia de madeira na Amazônia. “Além de 50% da madeira oriunda da Amazônia ser explorada ilegalmente, pelo menos outros 40% contêm algum tipo irregularidade, como fraudes em documentação ou uso de trabalho escravo“, diz Pedro.
UMA INFECÇÃO DO SISTEMA FLORESTAL
“Entre uma floresta ser toda queimada ou ela ter somente algumas árvores extraídas, a extração parece o melhor dos cenários”, diz Erika Berenguer, especialista em florestas tropicais da Universidade de Lancaster e membro da Rede Amazônia Sustentável (RAS). O problema é que o diabo mora nos detalhes. A exploração predatória leva a que se abram estradas para permitir o acesso às áreas. Com a estrada, vem a colonização por populações humanas; em pouco tempo, surgem mais perturbações que levam à degradação da floresta, como a caça e o desmatamento. Mesmo com a retirada de somente algumas árvores mais nobres, sempre há impacto envolvido – basta pensar na força que tem um ipê de 30 metros, que cai arrastando com ele a vida de tantas outras plantas. Floresta com o dossel mais aberto fica mais seca. Troncos e folhas no chão, receita perfeita para o fogo. “A exploração predatória de madeira é como uma doença do sistema imunológico, que deixa mais fácil a entrada de bactérias oportunistas”, explica Erika.
Joice Ferreira, pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental e uma das fundadoras da Rede Amazônia Sustentável (RAS), lembra que há um papel importante a ser exercido pelo consumidor. “É preciso que os compradores cobrem a documentação da madeira que estão adquirindo. Só existe ilegalidade porque há mercado.” O Documento de Origem Florestal (DOF) acompanha a madeira sempre que ela é transportada – da floresta à prateleira. O problema é que nem todos os estados usam o DOF, que é de controle do Ibama. Entre os que têm seu próprio sistema estão Pará e Mato Grosso, responsáveis por 70% da madeira que é comercializada no país, segundo relatório da BVRio.
Há quatro anos o IBAMA vem estudando a unificação do sistema de controle florestal de forma a permitir a visualização de toda a circulação de madeira no Brasil. O órgão acaba de lançar, em março de 2017, o Sinaflor, cujo objetivo é finalmente integrar o controle no país. Os estados são obrigados a aderir ao sistema até o final deste ano. “Essa informação precisa estar disponível para que toda a sociedade possa acompanhar o que está acontecendo com a extração no país – quem está explorando, onde e para quem está vendendo”, diz Jair Schmidt.
“Uma das medidas de prevenção que defendemos é a unificação do sistema de controle florestal, que permita a visualização de toda a circulação de madeira no Brasil. Essa informação deveria estar disponível para que toda a sociedade pudesse acompanhar o que está acontecendo com a extração no país – quem está explorando, onde e para quem está vendendo”, diz Jair Schmidt.
Outro caminho para o consumidor é estar atento a selos de certificação. O mais comum deles é o FSC (Forest Stewardship Council). A certificação, no entanto, custa caro para quem produz. “Como existe muita ilegalidade, quem faz tudo certo acaba tendo pouca vantagem”, diz Jair. Entre as apostas de mercado, a BVRio criou uma Bolsa de Madeira virtual para comercialização de produtos com garantia de origem responsável. A plataforma permite também ao comprador checar, a partir do número de documentação de cada madeira, qual o risco de ela ser oriunda de extração irregular.
As políticas para o manejo sustentável também precisam andar de mãos dadas com o que sugerem os que entendem de saúde da floresta. Joice Ferreira elenca as principais recomendações: “É preciso que haja mecanismos que garantam que a exploração de madeira não servirá de porta de entrada para desmatadores e caçadores, além de se evitar a concessão de exploração em áreas remotas, com alto grau de preservação, para que se mantenham protegidas”, sugere. “É importante resguardar matas completamente livres de qualquer intervenção humana, para que possam servir de fonte para trazer outras florestas de volta à vida”, conclui a pesquisadora.
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