Embora o país registre avanços no atendimento de estudantes com deficiência, ainda permite que grande parcela fique de fora da escola
Nas últimas semanas, foi impossível evitar o mal estar causado por duas notícias veiculadas na imprensa. Uma delas trazia um garoto que foi barrado de ir ao cinema com a turma da escola em que estuda, em Belo Horizonte. O estudante tem paralisia cerebral e é cadeirante.
O ocorrido ganhou notoriedade após a mãe do jovem fazer um post em seu perfil no Facebook. No relato, Adriane Cruz conta que o filho ficou na escola das 07h às 11h20, circulando pelos corredores, na companhia de uma auxiliar de apoio.
Segundo Adriane, não é a primeira vez que o garoto fica de fora dos passeios do colégio. Ela conta que, este ano, o filho sequer foi convidado para a festa junina da instituição. A escola segue dando justificativas como: “não sabíamos como ele iria reagir”.
Também não passou despercebida uma comunidade de mães, na Argentina, que comemorou, em um grupo de conversas, a saída de um estudante portador de síndrome de Asperger, um transtorno de espectro autista, do colégio San Antonio de Padua, que providenciou a sua transferência.
Além de caminhar na contramão do que se espera de uma sociedade inclusiva, capaz de garantir a igualdade de direitos e valorizar as diferenças humanas, os casos solapam os direitos desses estudantes no que diz respeito à igualdade de oportunidades educativas. E por que ainda permitimos que episódios como esses aconteçam?
Para a coordenadora do projeto Diversa, iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes, Aline Santos, a questão é complexa e não se projeta só sobre as escolas ou as famílias. “Sem dúvidas, estamos diante de um desafio global. Mas o que podemos dizer é que o Brasil ainda mantem uma atitude bastante assistencialista em relação à criança com deficiência. Não faz parte do senso comum o entendimento de que a deficiência é resultante de uma combinação de dois fatores, das particularidades do indivíduo, sejam elas de ordem física, sensorial ou intelectual, com as barreiras existentes na sociedade, que impedem que a pessoa com deficiência seja quem ela quiser”, avalia.
Para a especialista, a deficiência não está nas pessoas, mas nessas interações. Por isso, a eliminação dessas barreiras é condição fundamental para que se promova uma equiparação de oportunidades e igualdades de direitos.
Avanços e desafios
O Brasil registra avanços importantes no que diz respeito ao reconhecimento dos direitos das pessoas com deficiência, e inclusive dispõe de legislação robusta sobre essa parcela da população, tais como a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de 2008 e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), de 2015.
O país também apresenta ganhos no que diz respeito ao atendimento dos estudantes com deficiência na rede regular da educação básica. Dados das Sinopses Estatísticas da Educação Básica, do INEP, revelam que, em 2004, o número de matrículas de alunos com deficiência era de 566.753; em 2014, o número foi para 886.815, ou seja, registrou aumento de 56%.
Em 2014, também se nota crescimento no porcentual de matrículas dos estudantes com deficiência em escolas regulares e classes comuns (78%), contrapondo o contexto de predominância desses alunos em instituições especializadas.
No entanto, as marcas não eximem o país de um desafio estruturante. Ainda que o número de matrículas do público-alvo da educação especial esteja em crescimento constante, em 2014, não representava mais do que 1,78% do total de matrículas da educação básica, passando para 1,99% em 2016. Os dados permitem afirmar que parcela significativa de crianças e adolescentes com deficiência se encontra fora da escola.
Outra questão desafiadora diz respeito ao afunilamento das matrículas desse público desde o primeiro ciclo do ensino fundamental até o Ensino Médio. Um levantamento produzido pelo Todos Pela Educação para o Observatório do PNE, com base no Censo Escolar 2016, mostra que nos anos iniciais do ensino fundamental o porcentual de matrículas é de 3%, passando para 2% no segundo ciclo do Fundamental e 0,9% no Ensino Médio.
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O contexto é extremamente desafiador, sobretudo, pelo compromisso assumido de universalizar para a população de 4 a 17 anos com deficiência o acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado, conforme previsto na meta 4 do Plano Nacional de Educação.
Superação de estigmas
Na visão de Aline Santos, é notório que o Brasil tem muito a melhorar na condição de um país inclusivo, “sobretudo porque ter uma deficiência, em geral, significa conviver com o estigma da impossibilidade, da incompetência, da inferioridade”.
Para ela, também pesa o fato de que, na educação, é comum encontrar professores e outros atores da comunidade escolar que desconhecem os princípios básicos da educação inclusiva.
“A educação é um direito e não um favor; toda criança aprende; o processo de aprendizagem de cada criança é singular; e a construção da educação inclusiva é uma responsabilidade de toda a sociedade, envolve, portanto, a criação e o fortalecimento de redes de apoio compostas por professores, diretores de instituições públicas ou privadas, profissionais de apoio, equipes das escolas, profissionais não docentes, familiares, líderes comunitários e gestores públicos”, assegura.
A atuação conjunta desses grupos é fundamental para criar espaços de diálogo capazes de esclarecer sobre o convívio e o respeito às diferenças. “É uma oportunidade de mostrar que a criança com deficiência é como as outras e que ela tem sua singularidade natural, tendo em vista a diversidade humana. E favorecer a atuação em prol de sua autonomia, para que ela seja sujeito de sua própria história”, atesta.
A “falta de preparo” das escolas
Os casos enunciados no início da matéria, geralmente, acontecem sob a justificativa de que a “escola não está preparada para lidar com o estudante”. No entanto, não devem passar impunes. Em situações de negativa de matrícula, por exemplo, os familiares podem acionar o Ministério Público e os casos de bullying e discriminação podem ser tratados no âmbito do dano moral.
Para Aline, a ideia de que a escola precisa estar pronta para receber os estudantes com deficiência é baseada numa expectativa ilusória de um saber pronto, capaz de prescrever como trabalhar com cada criança.
“Se a condição humana não é dada pela natureza, mas construída ao longo do processo sociocultural e pautada pelas interações sociais que essa pessoa realiza com o meio em que vive, então o preparo do professor no contexto da educação inclusiva é resultado da vivência e da interação cotidiana com cada um dos estudantes”.
Em outras palavras, a especialista defende a existência de uma prática pedagógica dinâmica capaz de reconhecer e valorizar as diferenças. Em sua visão, não há, portanto, uma especialização ou uma prescrição pedagógica para incluir uma criança com deficiência.
“Um aluno com Síndrome de Down aprende diferente de outro com Síndrome de Down. A deficiência não é o que caracteriza esse indivíduo, ela é um detalhe que o compõe, assim como sua história, as apostas que a família fez em relação a ele, seu temperamento, gostos. Tudo isso tem que ser levado em conta no processo de ensino aprendizagem”.
A especialista entende que a chegada dos alunos com deficiência à escola ajuda a questionar o modelo homogêneo das instituições, além de ser uma oportunidade significativa de melhoria da qualidade do ensino brasileiro.
“A educação, de modo geral, precisa de novas estratégias para sanar problemas recorrentes, como a falta de conexão da sala de aula com a vida e o alto índice do fracasso escolar. Não é algo específico da educação inclusiva. Entendemos que o desafio do atendimento integrado para os alunos com deficiência, que passa pela interação entre o professor regular com o profissional do atendimento educacional especializado, possa ser incorporado e ajudar a todos os estudantes”, avalia.
Diversificar a metodologia de ensino e pautar as estratégias educacionais na singularidade dos estudantes é, portanto, uma demanda urgente de toda a educação brasileira. “Não dá mais pra adiar ou disfarçar a insuficiência do nosso ensino”, finaliza a especialista.
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