Fausto Pereira dos Santos é médico sanitarista e doutor em Saúde Coletiva. Com uma longa trajetória na construção e defesa do SUS, ele já foi presidente da Agência Nacional de Saúde por dois mandatos (de 2004 a 2010) e secretário de saúde no estado de Minas Gerais e nos municípios de Ipatinga e Belo Horizonte. Em entrevista ao Brasil de Fato MG, Fausto analisa os impactos das reformas do governo não eleito de Temer (PMDB) na saúde dos brasileiros e critica a proposta dos ditos “planos populares”, que o ministro Ricardo Barros pretende aprovar ainda neste ano.
O governo Temer (PMDB) tem promovido mudanças profundas no Estado brasileiro, entre as quais a terceirização ampla, geral e irrestrita, a reforma previdenciária e a Emenda 95, que coíbe o aumento do gasto primário por um longo período. Como isso interfere na saúde dos brasileiros?
Há medidas de impacto direto e indireto. O que impacta diretamente é a contenção do gasto, a Emenda 95 [antiga PEC 241/55], que congela o gasto público por 20 anos. Ela mantém os recursos da saúde em um patamar muito baixo e entra em contradição com o que o resto do mundo vive. Ocorrem várias mudanças de perfil demográfico e epidemiológico, há um envelhecimento populacional, incorporação de novas tecnologias e transformações no modo de produzir saúde. Então, o gasto com saúde tem crescido. Quando o governo define um patamar de gastos no nível em que teremos com a Emenda 95 (antiga PEC 241/55), o processo de envelhecimento populacional e incorporação de tecnologias não vai ter contrapartida pelo SUS. Isso condena as pessoas que, neste momento, estão aumentando sua expectativa de vida a não participarem desse desenvolvimento da área da saúde. Ao mesmo tempo, temos um crescimento da violência e dos problemas da urgência e emergência no país.
O projeto da terceirização ampla e geral tem outro impacto importante. Na saúde, o trabalho é muito especializado e exige pessoas com treinamento intenso, que conheçam o conjunto da realidade e, no caso da Saúde da Família, estabeleçam relações com a comunidade local. Já existem algumas áreas terceirizadas, nas quais se trabalha com alta rotatividade e salários muito baixos. Com isso, o que teremos é uma quebra da relação entre profissionais e usuários. Em Belo Horizonte, por exemplo, há profissionais que estão na mesma área há 15, 20 anos, que conhecem a população. Isso será cada vez mais raro.
“Setor privado gasta mais e produz menos”
Outra característica é que, nas áreas terceirizadas, as empresas vêm, ganham licitação, contratam as pessoas, não recolhem fundo de garantia, não recolhem direitos previdenciários. Depois, quebram e as pessoas ficam sem seus direitos. Aí, vem uma nova empresa, contrata aqueles trabalhadores e passa a não contar férias e outros direitos. Então, cria-se uma ciranda na qual o trabalhador é prejudicado e, na primeira oportunidade, ele sai do emprego e vai procurar outro vínculo que também será precarizado.
Quanto à reforma da Previdência, a proposta original do governo iguala rural e urbano e estende por mais 10 anos o período de contribuição das mulheres, entre outras medidas que condenam a maioria da população a não se aposentar nunca. Outro dia, no Congresso Nacional, o ministro Henrique Meirelles não conseguiu demonstrar que a Previdência, por si só, tem um déficit. Porém, ficou claro que ela precisa caber no teto dos gastos, o que significa que ela tem que ser restringida. A reforma é movida por essa política mais geral do governo, não por um suposto déficit.
Esse conjunto de reformas equivale a um desmonte do SUS?
Eu não gosto muito dessa expressão, “desmonte do SUS”, porque várias vezes já anunciamos esse desmonte, mas o SUS é como uma fênix. O que eu diria é que essas reformas têm um impacto muito forte no SUS. Elas tentam empurrar um conjunto de brasileiros para fora do sistema. Há duas formas de fazer isso. Uma é não ter assistência nenhuma, como em algumas comunidades que, por exemplo, foram ter médicos pela primeira vez há três anos, com o Programa Mais Médicos. Elas estavam fora do sistema. Outra forma é empurrar pessoas que, mesmo sem renda, fazem cotizações para manter os pais idosos, fazem algum malabarismo econômico para terem um plano de saúde, pois temos e teremos restrições ainda maiores na manutenção do sistema.
Recentemente, o governo encaminhou à Agência Nacional de Saúde Suplementar a proposta dos ditos “planos populares de saúde” ou “planos acessíveis”. Qual a sua análise sobre esses planos?
O que o governo fez foi juntar um conjunto de representantes de operadoras do mercado para reelaborar proposições que já estavam em discussão ou tinham sido derrotadas desde a implantação da lei dos planos, na década de 1990. O centro dessa proposta é quebrar a linha dorsal da regulamentação dos planos, que é o fato de todas as doenças do CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde) terem cobertura, de modo que ninguém seja excluído por ter alguma doença, ou por idade. Além disso, propõe-se a existência de planos nos quais só a atenção primária teria cobertura, deixando fora a alta complexidade. Por sua vez, isso cria um caminho rápido para fugir da regulação e chegar à alta complexidade do SUS.
Um exemplo: com uma suspeita de câncer, hoje você passa por um conjunto de procedimentos. Se você conseguir fazer a diagnose simplificada pelo plano, já entrará na fila do SUS lá na frente. Isso exclui um amplo conjunto de procedimentos da questão ambulatorial, da saúde mental, da oncologia, da insuficiência renal crônica, da hemodiálise, cardiologia, cateterismo. A outra proposta é fazer um cartão de desconto, no qual você paga uma mensalidade para ter profissionais pré-credenciados, mas, se você usar o serviço, você paga de novo. Criam-se também planos regionais, que podem ser oferecidos em cidades pequenas, mas a extensão da cobertura daquele plano é apenas o que já tem naquela cidade. Então, o conjunto das proposições é uma quebra do processo regulatório construído nas últimas décadas.
Certa ideologia prega que o Estado é necessariamente ineficiente e oneroso para a sociedade. Por essa ótica, os problemas da saúde pública – como filas em hospitais, entre outros – são apontados como motivo para seu desmonte, ao lado da ilusão de que o mercado seria capaz de substituir o sistema público com mais eficiência e menor custo. Como responder a esse discurso?
O prefeito de São Paulo, João Dória (PSDB), disse que resolveria o problema dos exames de São Paulo com o “Corujão da Saúde”, contratando a rede privada para, à noite, para acabar com a fila do SUS. Ele pegou recursos para contratar a rede privada e fez algumas intervenções no setor público. O resultado é o seguinte: ele gastou a mesma quantia de dinheiro público com o setor privado e com os hospitais públicos. Do total dos exames feitos nos primeiros três meses, três quartos foram no setor público e apenas um quarto no setor privado. Dizem que a esquerda é ideológica, mas os liberais são muito mais. Para eles, é uma questão de fé a privatização e a ideia de que o mercado é melhor.
“Terceirização na saúde vai piorar atendimento”
Não devemos negar os problemas de ineficiência no setor público. Ao negar, deixamos de tomar medidas importantes para aprimorar o processo de gestão do setor público. Mas eu, como gestor, não vi nenhum exemplo de eficiência no setor privado que desse reforço a essa tese. Por exemplo, planos de saúde, com um financiamento quatro vezes maior do que per capita do SUS, com um atendimento muito menor, têm resultados na mortalidade materna e em vários outros procedimentos que não são melhores. É claro que ter mais recursos eventualmente agiliza a execução de alguns procedimentos, principalmente na diagnose, que é um grande gargalo do SUS, principalmente exames de média e alta complexidade. Mas, como disse, nada corrobora a tese de que o mercado é necessariamente melhor.
Quem se beneficia quando a saúde pública perde recursos?
Quando a saúde pública perde dinheiro, ninguém se beneficia, nem mesmo o mercado de saúde, as empresas, os grandes hospitais. A contenção de recursos da saúde significa um atraso para a sociedade, uma opção pelo pagamento de juros para o capital financeiro, em detrimento de um projeto de desenvolvimento para o país. Quando a saúde não é organizada para atender ao conjunto da população, cria-se um conjunto de dificuldades que prejudicam o mercado como um todo.
Aliás, onde o mercado mais ganha é onde o governo gasta com o mercado. Na Holanda, por exemplo, o sistema é universal, mas o provimento é privado. Nos Estados Unidos, o Obama Care também não foi muito além disso. Se você restringe o dinheiro para a saúde, como quer o governo Temer (PMDB), lá na frente haverá um impacto até mesmo sobre o próprio mercado. No médio prazo, é uma camisa de força para o desenvolvimento de toda a área da saúde.
Você gostaria de abordar alguma questão que não foi colocada?
Eu penso que o governo Temer tem um problema de origem que é sua falta de legitimidade. Essas propostas desestruturantes que ele promove não estão lastreadas na sociedade brasileira, não foram eleitas, não foram referendadas. Então, me parece que há um duplo golpe: na democracia, com um impeachment sem base legal; por outro lado, um golpe que se dá pelo conjunto das proposições do governo. Então, temos um problema importante para o futuro do Brasil, se essas reformas prosseguirem nesse ritmo.
Por Wallace Oliveira
Edição: Joana Tavares
Comentários com Facebook