Enquanto o Brasil se prepara para discutir a ampliação do acesso a armas de fogo — uma das principais promessas de campanha do presidente eleito, Jair Bolsonaro —, nos EUA três novos estudos evidenciam o perigo para as crianças que é ter uma em casa. As pesquisas serão apresentadas na semana que vem, na Conferência Anual da Academia Americana de Pediatria (AAP).
A primeira delas mostra que os estados onde as leis sobre o assunto são mais brandas registram proporcionalmente mais que o dobro de mortes de crianças por armas de fogo do que os que têm legislações mais restritivas.
Já a segunda concluiu que a maioria das crianças de 7 a 17 anos não diferencia armas reais das de brinquedo. Por fim, a terceira pesquisa indica que quanto mais nova a criança, maior a chance de ela ser ferida acidentalmente.
— Ferimentos por armas de fogo são a segunda maior causa de morte de crianças nos EUA, mas descobrimos uma clara discrepância em onde essas mortes acontecem que corresponde à força da legislação sobre armas dos estados — diz Stephanie Chao, professora de cirurgia pediátrica da Escola de Medicina da Universidade de Stanford e líder do primeiro estudo. — Nos estados com as leis mais lenientes, as crianças morrem a taxas assustadoramente maiores.
Nesse primeiro estudo, ainda não publicado, Chao e os colegas Jordan Taylor e Sriram Madhavan, também pesquisadores em Stanford, compilaram dados sobre mortes de crianças por armas de fogo nos EUA entre os anos de 2014 e 2015 — num total de 2.715 incidentes anuais, dos quais cerca de dois terços homicídios (involuntários ou não) e um terço suicídios (também involuntários ou não) — e os cruzaram com o rigor das leis sobre sua posse, porte e cuidados na sua guarda medido por índice calculado pela Campanha Brady para Prevenção de Violência com Armas, um dos principais grupos ativistas por maior controle de armamentos nos EUA.
Mesmo levando em conta fatores como pobreza, desemprego e nível educacional, nos estados com maior rigor na legislação sobre armas o risco de morte de uma criança por arma de fogo era 66% menor que nos com índices mais baixos de rigor. Em uma análise paralela, os pesquisadores também verificaram que a existência ou não de legislação específica para prevenir o acesso das crianças às armas, como trancas especiais, estão associados a taxas muito menores de suicídio delas por armas de fogo, com os estados sem leis relativas à questão registrando taxas de incidentes do tipo mais de quatro vezes superiores aos que exigem maior cuidado no armazenamento dos armamentos.
— A cada ano, mais crianças morrem por ferimentos de armas de fogo (nos EUA) do que de câncer e doenças do coração combinados — destaca Chao. — Mas cada uma dessas mortes é evitável. Nosso estudo demonstra que a legislação em nível estadual previne que as crianças sejam mortas por armas. Assim, embora a legislação federal permaneça uma questão contenciosa e travada, mostramos que a legislação estadual pode ser um caminho para prevenir as mortes pediátricas por armas de fogo.
No segundo estudo, pesquisadores liderados por Kiesha Fraser Doh, professora de pediatria e medicina de emergência da Escola de Medicina de Universidade Emory, entrevistaram 297 pares de crianças e seus responsáveis que visitaram prontos-socorros em duas áreas suburbanas e uma urbana no Sudeste dos EUA num período de três meses em 2017. Dos responsáveis, 25% eram donos de armas, em geral brancos, com renda acima de US$ 50 mil anuais e alguma educação superior.
De acordo com a pesquisa, mais da metade (51%) das crianças cujos responsáveis eram donos de armamentos podiam brincar com armas de brinquedo, contra 26% no grupo dos responsáveis que não tinham armas. Os responsáveis donos de armas de fogo também discutiam mais questões de segurança relativas a elas com as crianças (86%) do que os que não tinham armas (58%), o que os deixava mais confiantes de que elas saberiam diferenciar armas reais das de brinquedo (86%) do que os do segundo grupo (58%).
Mas, quando instadas a diferenciar armas reais das de brinquedo em imagens, menos da metade das crianças dos dois grupos — 39% entre as que os responsáveis tinham armas e 42% entre as que eles não tinham — apontou a arma verdadeira. Além disso, apenas cerca de um terço dos responsáveis donos de armas (34%) as armazenava trancadas, descarregadas e em separado da munição, como recomenda a AAP, apesar de 53% das crianças saberem onde estavam guardadas, e 45% saberem onde estava a munição.
— Um de nossos achados mais dramáticos foi ver o quão facilmente as crianças podem confundir armas verdadeiras com as armas de brinquedo de aparência realista existentes hoje — comenta Fraser. — Levando especialmente em consideração que os donos de armas são duas vezes mais propensos a deixar as crianças brincar com armas de brinquedo, a armazenagem segura das armas de fogo é algo crítico.
Já no último estudo, Shilpa J. Patel, professora de pediatria e medicina de emergência do Sistema Nacional de Saúde da Criança dos EUA, e colegas revisaram dados da Amostragem do Departamento Nacional de Emergências do país de 2009 a 2013 em busca de atendimentos em prontos-socorros de crianças e adolescentes com menos de 21 anos feridos por armas de fogo. Nestes cinco anos, eles contabilizaram quase 112 mil registros, ou uma média de mais de 22,3 mil anuais, dos quais cerca de 63% foram vítimas por acidente, 30,4% de assaltos e 1,4% as crianças e jovens usaram as armas para ferirem a si mesmos. Dos casos que chegaram aos hospitais, 6,1% das crianças e jovens, ou quase 7 mil, acabaram morrendo em decorrência dos ferimentos.
— As crianças com menos de 12 anos têm muito mais chances de serem feridas por acidente — acrescenta Patel. — Por outro lado, verificamos que as chances de ser ferido por armas de fogo devido a um assalto são maiores entre os jovens com 18 a 21 anos de idades. Diante disso, os médicos podem ter um papel importante na prevenção de ferimentos por armas de fogo em crianças conversando com as famílias sobre o acesso a elas, sua guarda segura e prevenção da violência.
Pesquisadora do Instituto Igarapé, dedicado ao estudo de questões de segurança e violência, Michele Ramos destaca que o discurso em torno da flexibilização da posse de armas de fogo no Brasil se concentra muito no aspecto da criminalidade e sua contenção, deixando de lado outras problemáticas como o perigo que sua posse representa para as crianças dentro de casa.
— Mais do que sinais de alerta, esses estudos são evidências de que ter armas de fogo em casa não só não significa estar protegido da violência externa como aumenta a vulnerabilidade das crianças a sofrerem acidentes e morrerem nas residências, justo um dos ambientes que deviam ser os mais seguros para elas — resume. — Ao fazer a distinção entre os estados americanos com legislações mais e menos flexíveis, só o primeiro estudo mostra que, de fato, regular a posse de armas de fogo reduz o número de acidentes. Então, falar sobre políticas de controle da posse de armas de fogo também é falar em reduzir os acidentes fatais, e podemos esperar que uma flexibilização na legislação sobre posse de armas no Brasil tenha um impacto no número de mortes acidentais de crianças por armas de fogo.
Cesar Baima
https://oglobo.globo.com/sociedade/ter-arma-em-casa-aumenta-numero-de-morte-de-criancas-mostram-estudos-23206078
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