Ao instalar o jogo, o usuário dá à empresa acesso a uma infinidade de dados; além de executar, por ela, o mapeamento de espaços até então inexplorados
O lançamento do jogo Pokémon Go está cercado de expectativa e tem resultado em inúmeras discussões nas redes sociais. As polêmicas são proporcionais ao sucesso. Uma reportagem publicada no início do mês registrava mais de 100 milhões de downloads.
De um lado, críticos questionam a futilidade e o tempo desperdiçado caçando os bichinhos virtuais em todos os lugares. De outro, frenéticos defensores se deleitam com o sistema de realidade aumentada que permite misturar o mundo virtual à realidade enxergada pelo usuário.
Mas há outros problemas mais graves como, por exemplo, quais são os riscos à privacidade trazidos pelo jogo? E, vale a pena entregar um volume considerável de informações pessoais pelo prazer de poder sair em busca de Pikachus, Charmeleons e Charizards?
Em um jogo com este nível de alcance, estas perguntas não se resumem a provocações de grupos de Whatsapp ou de Linhas do Tempo do Facebook. Tornam-se questões centrais no debate acerca do presente e futuro da preservação da privacidade como garantia prevista na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição Federal.
Diz a primeira: “Ninguém será sujeito à interferência em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”. Já Carta Magna de 1988 preconiza: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”
De que maneira o aplicativo entra na sua vida privada? Uma das formas é por meio das permissões exigidas para a instalação, tais como: contas, localização (via GPS ou por meio de aproximação a partir da rede de conexão), leitura dos dados armazenados no USB, acesso total à rede, prevenir o telefone de dormir, extratos de pagamentos do Google Play, pareamento com outros dispositivos usando Bluetooth, identificação das conexões de rede e controle da vibração.
Uma mensagem na tela de permissões – daquelas de fonte 8 – acrescenta: “Pokémon Go pode automaticamente adicionar funcionalidades adicionais dentro de cada grupo [de permissões]”. Ou seja, para além do rol extenso de acesso a quase tudo o que você faz no seu telefone, o aplicativo ainda pode ir além sem necessariamente te pedir permissão.
Política de “privacidade”
A política de privacidade do jogo revela que outras possibilidades a empresa tem sobre os usuários. O texto afirma na seção 2.a.ii que não serão coletadas informações que identifiquem o usuário. Mas, na frase seguinte, deixa claro: “quando você (ou sua criança autorizada) cria uma conta nós iremos coletar outras informações (como língua e país) que não podem ser usadas para identificar você (ou sua criança autorizada) a menos que combinadas com outras informações de identificação” (grifo nosso).
Como veremos adiante, o laboratório criador do jogo, Niantic, tem relações com a Google. Será que esta não possui “outras informações de identificação” sobre parte dos pokelovers?
O jogo permite o registo de usuários maiores de 13 anos. Por outro lado, crianças com menos idade podem se cadastrar desde que o responsável se cadastre na The Pokémon Company International (TCPI). No caso dos usuários estadunidenses, para que a relação de parentesco seja comprovada, o pai tem de fornecer nome, número da seguridade social daquele país e endereço, ou seja, para essas pessoas a promessa de não identificação virou lenda, já que são fornecidas informações críticas como endereço e registro na seguridade social.
O laboratório alega que tais informações não serão fornecidas a eles, mas são de posse da TCPI, podendo ser usadas pela companhia.
Para que o usuário possa jogar livremente, ele deve permitir que o aplicativo instale cookies – um tipo de recurso técnico que é implantado no dispositivo e que repassa um conjunto de informações à empresa responsável. Mas não é apenas a empresa que detém tal acesso: “terceiros com os quais mantemos relações, inclusive anunciantes, podem também instalar os seus cookies próprios no seu hard drive”, como consta na seção 2.b. Você sabe quem são estes terceiros que vão inserir programas-espiões no seu celular?
O aplicativo vai gravar “certa informação” sobre como a pessoa usa o jogo – como consta na seção 2.c. Que tipo de informação? O documento não define claramente. O mesmo vale para o seu celular. Diz a seção 2.d: “Nós coletamos certas informações que o seu dispositivo móvel envia quando você está usando o nosso serviço” para, em seguida, exemplificar alguns tipos de dado sem deixar claro quais são todas as “certas informações” que o aplicativo extrai do seu celular.
A empresa pode compartilhar várias dessas “certas informações” coletadas com terceiros. Basicamente, ela pode entregar suas informações para qualquer outro ente com qualquer finalidade: “Nós podemos compartilhar informação agregada e informação não-identificável com terceiros para pesquisa e análise, definição de perfil demográfico e outros propósitos similares” (grifo nosso) – como consta na seção 3.c. Que tipo de pesquisa e análise? Embora o texto afirme que isso não incluirá os dados de identificação do usuário, isso não reduz a enorme porteira criada por esta seção.
Mas o item mais preocupante é o que trata da entrega de dados a entes governamentais. De forma cristalina, a seção 3.e enuncia: “Nós cooperamos com o governo, com órgãos de fiscalização ou com terceiros para aplicar e respeitar a legislação. Nós podemos repassar qualquer informação sobre você que está em nossa posse ou controle ao governo, a órgãos de fiscalização ou a terceiros caso entendamos como apropriado para: (a) responder a solicitações, processos; (b) proteger nossa propriedade, direitos e segurança e direitos de um terceiro ou do público em geral; (c) identificar e interromper atividades que nós consideremos ilegal, antiética ou legalmente questionável” (grifo nosso).
Niantic, Google e CIA
Uma publicação do site Gawker sugere que o jogo tem estreita relação com a Agência de Inteligência Central dos Estados Unidos, a CIA. A evidência apresentada pela publicação é que o laboratório responsável pelo desenvolvimento, Niantic, é comandado por John Hanke – mesmo responsável pela criação da empresa Keyhole, voltada ao monitoramento geoespacial.
Esta empresa recebeu financiamento de uma outra, a In – Q – Tel, ligada à Agência Nacional de Inteligência Geoespacial do Governo dos Estados Unidos.
O texto mostra, então, a visão da Agência sobre a importância de dados pessoais. Para isso menciona a revista institucional Pathfinder Magazine, cuja edição N. 2 de 2016 traz um artigo sobre Big Data que afirma: “[…] agências governamentais, como a NGA, crescentemente usam análises de Big Data para derivar significados do volume exponencial de dados relacionados às suas missões”. E acrescenta: “[…] áreas de inteligência e segurança cibernética podem ser mais massivas: registros de tráfego de dados em redes, logs de acesso e indicadores externos estão constantemente crescendo e irão crescer ainda mais rapidamente à medida que novos sistemas são colocados online.”
Em 2004, a Keyhole foi comprada pelo Google, cuja inteligência foi usada para a criação do que hoje conhecemos como Google Earth. A mesma Google já havia feito uma tentativa anterior com a criação do jogo Ingress. A lista de permissões requeridas do usuário que deseja baixar o aplicativo é muito semelhante, como mostrou uma reportagem do site especializado Tech Crunch.
Tudo pela diversão?
“Ah, mas não é diferente do que já fazem com nossos dados.” Essa tem sido a explicação de muitas pessoas para ignorar ou minimizar o debate sobre os atentados à privacidade do Pokémon Go. Se é verdade que diversos outros aplicativos e plataformas, em especial o próprio Google e o Facebook, coletam uma quantidade enorme de dados sobre as pessoas, também deve ser considerado que o Pokémon Go traz algumas novidades muito preocupantes.
Em primeiro lugar, ele radicaliza o escopo das informações pessoais fornecidas e as possibilidades de uso delas. Em segundo lugar, ele é voltado para qualquer idade, mas tem uma popularidade enorme entre crianças, um público menos ciente e preocupado com questões de privacidade. Em terceiro lugar – e talvez a mais relevante dentre as polêmicas –, o jogo está entrando em espaços até então não explorados.
Explicando: enquanto para o Google Earth e para o Google Street View a Google precisa empregar uma energia enorme para realizar o mapeamento das superfícies e aéreas externas, o Pokémon Go faz isso para o interior não só das casas como de órgãos públicos. Nesta primeira semana de funcionamento no Brasil, há relatos de pessoas caçando Pikachus e afins no Congresso Nacional, em ministérios e até mesmo na sede da Polícia Federal em Brasília. E o aplicativo permite que a empresa proprietária direcione o mapeamento “voluntário” ao disponibilizar pokémons no lugar que desejar – um poder adicional.
O laboratório Niantic pode repassar qualquer parte do universo de informações que ele dispõe sobre você para o governo ou mesmo para terceiros. Por quê? Porque você concordou com isso ao instalar a aplicação no seu dispositivo.
Diz o velho ditado: “não existe almoço grátis”. E, no caso do Pokémon Go, o preço não é apenas o contato com anúncios e outras formas de publicidade. Os usuários estão pagando com um dos bens mais preciosos da sociedade contemporânea: os dados pessoais.
O escândalo internacional de espionagem em massa revelado por Edward Snowden mostrou que essas informações são matéria-prima altamente valorizada por conglomerados e governos. Então, vale se questionar, até onde você concorda e aceita a violação da sua privacidade por um jogo, mesmo que ele seja divertido e que te permita interagir com amigos e estranhos.
O que será preciso para que a privacidade – um direito humano – seja valorizada pelos seus possuidores e pelo conjunto da sociedade? A resposta a esta pergunta está nas escolhas que fazemos no dia-a-dia e na decisão sobre aderir ou não a esta nova e avassaladora moda do momento.
*Jornalista, integrante do Coletivo Intervozes e doutorando em Sociologia da Tecnologia na UnB
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